segunda-feira, 14 de março de 2011

O espelho



Por Chanah Zuber Scharfstein; do Chamado do Shofar, editado por Nissan Mindel.

Esta é a história de um espelho lindo e muito especial. Pendia sobre uma parede na sala de jantar de uma bela casa que pertencia a um homem rico.

O espelho era grande e quadrado, com uma moldura larga e grossa de ouro, entalhada com belos desenhos de folhas e flores. Todos aqueles que viam o espelho o admiravam, mas todos percebiam também que era imperfeito. Em um dos cantos, veja você, o aço prateado do revestimento tinha sido raspado, de modo que esta parte do espelho era vidro comum. As pessoas comentavam sua beleza e então diziam: "Oh, que pena! É uma tristeza que o espelho esteja danificado!" Para surpresa de todos, o proprietário do espelho dizia aos visitantes que fora ele mesmo quem deliberadamente raspara a cobertura de prata! Pode imaginar ter um espelho caro como esse, uma obra de arte, e então estragá-lo? Mas deixe-me contar-lhe a história daquele espelho.

Muitos anos atrás, em uma cidadezinha da Polônia, vivia um homem chamado Avraham. Tinha uma pequena loja e ganhava apenas o suficiente para cuidar de sua família. Não era rico, mas também não era um homem muito pobre. Tinha apenas alguns fregueses. Às vezes as pessoas saíam sem nada comprar porque Avraham não tinha muitos artigos para escolherem. As pessoas iam às lojas maiores, porque ali poderiam encontrar aquilo que queriam.

Avraham estava feliz com a vida que levava. Embora não fosse rico, sempre tinha o suficiente para dividir com os outros. Nenhuma visita que fosse à sua casa saía com fome. Toda vez que um pobre precisava de ajuda, Avraham sempre achava algum dinheiro para dar-lhe. Avraham e sua mulher viviam uma vida muito simples. A casa era pequena, e na verdade necessitava de uma demão de tinta, mas jamais havia dinheiro suficiente para isso. Achavam que era mais importante ajudar alguém com problemas que pintar a casa. Seus móveis eram velhos pelo mesmo motivo. As cortinas nas janelas provavelmente já tinham sido lavadas mais de cem vezes. Avraham e a mulher não tinham tapetes no chão. Suas roupas eram simples, e não compravam coisas novas com muita freqüência. Muitas de suas xícaras e pratos tinham arranhões e rachaduras. A comida era muito simples.

É verdade, a casa não era luxuosa. Mas era um verdadeiro lar. Era um local aconchegante e feliz. Todos se sentiam confortáveis e à vontade ali. Avraham recebia muitas visitas porque todos sabiam que ele era gentil e gostava de ser útil.

Certo dia, Avraham estava de pé à porta de sua lojinha esperando pelos fregueses quando percebeu um estranho que se dirigia para lá. Era uma cidade pequena, portanto ele conhecia todas as pessoas do local. Quando o estranho estava perto da loja, Avraham perguntou-lhe como poderia ajudá-lo. "Talvez o senhor goste de ir até minha casa e descansar um pouco," disse ele. "Se estiver com fome, por favor, seja meu convidado. Se tiver sede, venha comigo para beber alguma coisa. Talvez precise de dinheiro? Nós o ajudaremos." O convite de Avraham era tão caloroso e amigável que o estranho decidiu parar em sua casa para um descanso.

O que Avraham não sabia era que este não era um estranho comum. Era um Rebe famoso, muito santo e muito sábio, de uma cidade distante. Estava a caminho de um casamento e por acaso passara pela cidade de Avraham. O Rebe era um homem importante e muitas pessoas na Polônia viajavam longas distâncias para escutar suas palavras de sabedoria, ou para solicitar uma bênção ou prece em tempos de necessidade. Teria sido uma grande honra para qualquer casa receber o Rebe como hóspede.

O Rebe logo percebeu a grande bondade e generosidade de Avraham. Ele conhecia muitas pessoas ricas que poderiam ter ajudado os pobres com mais facilidade que Avraham, mas que faziam muito menos que ele. O Rebe apreciou sus breve estadia. Antes de ir embora, abençoou Avraham com riquezas, para que pudesse continuar ajudando os pobres e necessitados mais facilmente.

Depois que o Rebe saiu, a loja de Avraham tornou-se subitamente um local muito movimentado. Os fregueses chegavam durante todo o dia. Todos achavam aquilo que queriam, e as pessoas não precisavam mais sair de sua loja para comprar em outro local. A cada dia que passava, Avraham tinha mais clientes novos e mais dinheiro para levar para casa. Logo precisou ampliar a loja para acomodar tantos fregueses novos. Após algum tempo, Avraham tornou-se um lojista muito importante e rico. Tornou-se um dos homens mais abastados da cidade. A bênção do Rebe, de que Avraham se tornaria rico, tinha sido cumprida.

Ser rico parece tremendamente bom quando se é pobre. As pessoas às vezes pensam que, se fossem ricas, a vida seria bela. Mas ser rico pode ser um problema, também. Agora que Avraham tinha uma grande loja, tinha muito mais trabalho a fazer. Preocupava-se com ladrões que poderiam assaltar a loja ou sua casa. Preocupava-se com os negócios. Queria que a loja continuasse crescendo. Desejava uma casa muito bonita. Queria roupas novas e luxuosas. Como Avraham estava ocupado com a loja, tinha menos tempo para estudar Torá e ir à sinagoga para rezar. Nem sequer tinha tempo para se incomodar com os pobres. Avraham podia ser visto somente em entrevistas com hora marcada. Seus secretários tinham ordens de dar dinheiro às pessoas necessitadas que vinham pedir ajuda, mas Avraham não tinha tempo de ouvir suas histórias ou problemas.

Avraham e a esposa mandaram construir uma casa novinha em folha, que parecia quase um palácio. Tinha muitos quartos, e todos eram grandes e bonitos. Nas janelas, pendiam drapeados de veludo macio. Os pisos eram cobertos com tapetes espessos. Havia papel de parede em todos os aposentos. A cozinha estava repleta de novas panelas e caldeirões. Havia muita louça fina nos armários. Todos os móveis eram finos e caros. A mesa da sala de jantar era feita de madeira brilhante. As cadeiras da sala de estar eram macias e estofadas. Sobre as paredes, pendiam quadros originais de grandes artistas. E em uma das paredes da sala de estar pendia um enorme espelho. Era tão grande que quase cobria toda a parede. Ao redor do espelho havia grossa moldura de ouro. Ninguém mais na cidade possuía espelho tão refinado. Todos que o viam falavam de sua beleza. Era realmente uma obra prima.

Havia muitos criados na nova residência. Mas esta casa era tão requintada, que Avraham não queria deixar mendigos ou pessoas pobres entrarem. Os estranhos não eram mais convidados para uma refeição. Os criados abriam a porta e davam algum dinheiro aos necessitados, mas isso era tudo.

"Avraham está diferente" - diziam as pessoas. "Mudou desde que se tornou rico. Que pena! Ele era sempre tão gentil e bom, e olhe para ele agora. Não tem mais tempo para nós." E balançavam tristemente a cabeça, lembrando-se dos bons tempos, quando Avraham nunca estava ocupado demais para ajudar os outros.

O tempo passou. Certo dia, um mensageiro foi visitar Avraham. Tinha sido enviado de uma longa distância, pelo famoso Rebe que tinha dado a Avraham a bênção da riqueza. A notícia da boa sorte de Avraham tinha chegado aos ouvidos do Rebe, e agora ele precisava de ajuda. Um inocente judeu tinha sido posto na prisão sob falsas acusações, e era necessária grande soma de dinheiro para libertá-lo. Avraham, naturalmente, ficou feliz em ajudar. Deu ao mensageiro a quantia e mandou-o de volta com votos de boa viagem de retorno. Enviou também lembranças ao Rebe.

O mensageiro tinha cumprido sua missão, mas não se sentiu feliz. Tinha sido difícil para ele falar pessoalmente com Avraham. Os secretários não queriam deixar um estranho entrar no escritório particular de Avraham. Este tinha dado a ele o dinheiro, mas não o convidara à sua casa para comer e descansar. O mensageiro ficara surpreso. O Rebe tinha elogiado Avraham, e sempre falava de sua hospitalidade e de seus costumes caridosos. O mensageiro não podia entender o que estava acontecendo.

Quando voltou ao Rebe, deu-lhe o dinheiro e relatou tudo sobre a viagem. O Rebe balançou tristemente a cabeça. Ele entendia que Avraham, o homem pobre, tinha um coração de ouro, mas Avraham, o homem rico, com todo seu ouro, parecia mais ter um coração de pedra. O Rebe decidiu visitar Avraham para ver o que se poderia fazer.

Quando o Rebe chegou à casa de Avraham, este o recebeu calorosamente, e convidou-o a entrar. A casa parecia muito diferente daquela em que Avraham vivia quando o Rebe o visitara pela primeira vez. Era espaçosa e bonita, mas desaparecera a amizade e o calor que se notavam na antiga casa simples. O Rebe caminhou sobre o pesado tapete. Observou os caríssimos quadros. Contemplou a mobília nova e dispendiosa, e as cortinas drapeadas feitas do veludo mais fino e macio. E então avistou o espelho. Olhou para sua reluzente moldura de ouro. Era o maior espelho que jamais vira.

"É uma mudança e tanto, não é?" disse Avraham com um sorriso encantado no rosto. "E aquele espelho" - continuou - "é meu tesouro favorito. De todos os objetos encantadores que possuo, o espelho é o que mais gosto. Custou muito dinheiro, mas valeu a pena. É realmente uma obra prima, uma obra de arte, não é? disse ele, voltando-se para o Rebe.

"Sim" - respondeu o Rebe. "Uma mudança e tanto. Uma enorme mudança." Disse isso suavemente, em voz baixa e séria, e seu rosto parecia triste.

De repente, o Rebe chamou Avraham. "Venha até aqui" - disse ele, e pediu-lhe que caminhasse até o espelho, e parasse em frente da peça. O Rebe então afastou-se um pouco e pediu a Avraham para dizer-lhe o que via.

Avraham estava intrigado, mas respondeu: "Eu mesmo. É isso que vejo no espelho. Meu próprio reflexo - isso é tudo que posso ver."

"Olhe mais de perto" - disse o Rebe. "Que mais pode ver?"

"Vejo minha linda mobília refletida no espelho. Vejo meus quadros. Vejo os tapetes e cortinas. Posso ver muitas coisas na minha linda casa" respondeu Avraham.

O Rebe então dirigiu-se à janela com Avraham. Afastou as cortinas e disse a Avraham para olhar para a rua lá fora. A casa de Avraham estava em uma grande avenida e as pessoas estavam sempre passando. Como era uma cidade pequena, Avraham conhecia quase todas as pessoas que passavam pela casa. O Rebe fez-lhe muitas perguntas sobre as pessoas que viam. E Avraham contou-lhe que a mulher com uma cesta era uma viúva pobre com muitos filhos pequenos. Ela estava esperando que pessoas bondosas pusessem comida para sua família na cesta. Falou ao Rebe sobre Bentze, o carregador de água, que estava ficando velho e achava difícil carregar sua mercadoria. Apontou para Yankel, o alfaiate, um excelente judeu que ia à sinagoga todos os dias, mas era muito pobre e nunca tinha dinheiro suficiente para a família.

Avraham estava se perguntando por que o Rebe lhe fazia todas estas questões. O Rebe era um homem sério que não tinha tempo a desperdiçar. Por que estaria tão curioso sobre todas estas pessoas?

Então o Rebe disse a Avraham: "É estranho, não acha? Um espelho e uma janela são ambos feitos de vidro, e mesmo assim bastante diferentes."

"O que quer dizer? perguntou Avraham.

"Bem" - disse o Rebe - "quando você olhou no espelho, pôde apenas ver a si mesmo e os objetos que lhe pertencem. Pôde ver muito mais quando olhou pela janela. Então pôde avistar todos seus vizinhos e amigos da cidade inteira."

"Isso é verdade" - disse Avraham. "Um espelho e uma janela são ambos feitos de vidro. A janela é transparente. A luz pode passar através dela. É transparente e pode-se ver tudo. Por outro lado, o espelho é coberto de prata em um lado. Os raios de luz não podem passar por ele, e portanto um espelho pode apenas refletir aquilo que está à sua frente."

"Entendo" - disse o Rebe, assentindo com a cabeça. "Entendo. O pedaço de vidro simples é transparente, permitindo que se veja outras pessoas e suas vidas. Mas quando está coberto com prata, então você pode apenas ver a si mesmo. Ora veja, muito interessante. É realmente fantástico, não é? Você acha que funciona da outra maneira também? Você poderia pegar um espelho e raspar a prata, para que pudesse ver a todos, em vez de apenas você mesmo?"

Os olhos de Avraham encheram-se de lágrimas. Sentiu-se tão envergonhado. Finalmente, estava começando a entender tudo que lhe tinha acontecido desde que se tornara rico.

Naquela noite, Avraham deu uma grande festa em sua casa. Toda a cidade foi convidada, especialmente as pessoas pobres. Todos se divertiram muito. Então Avraham solicitou silêncio. Fez um breve discurso e pediu o perdão de todos. Disse aos convidados que estava arrependido pela forma como agira quando se tornou rico. Sua vida seria diferente a partir daí. Prometeu a eles que suas portas estariam sempre abertas para todos, e que jamais estaria ocupado demais para ajudar aqueles que dele precisassem.

Depois que os convidados se foram, Avraham caminhou até seu lindo espelho. Com uma faca afiada, raspou a prata que revestia um dos cantos. Não parou até que aquela parte estivesse tão clara quanto vidro. Somente então ficou satisfeito.



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