quarta-feira, 4 de agosto de 2010

FÁBULAS Imitadas de Esopo La Fontaine - Justiniano José da Rocha

ÍNDICE
APRESENTAÇÃO.
Nélson Jahr Garcia

O galo e a pérola.
O cão e a máscara
O cão e a carne.
A mosca e o carro.
O homem e a doninha.
O Sol e as rãs.
A galinha dos ovos de ouro.
O lobo e o cordeiro.
O cão e a ovelha.
O lobo, o veado e a ovelha.
O galgo velho e seu amo.
O leão, a vaca, a ovelha e a cabra.
A rã e o rato.
O ladrão e o cão.
A mosca e o coche.
Os membros e o estômago.
O parto da montanha.
A serpente e a lima.
O leão velho.
A águia e a tartaruga.
O mono e a raposa.
Os dois viajantes.
As duas cadelas.
O homem e a víbora.
As pombas e o gavião.
O leão e o burro.
O pavão e Juno.
O galo e a raposa.
A águia e a raposa.
O bezerro e o boi velho.
As rãs querendo um rei.
O lobo e a garça.
O lobo e o cabrito.
O corvo e a raposa.
As lebres e as rãs.
Os lobos e as ovelhas.
O rato da cidade e o do campo.
Os pássaros e a andorinha.
A raposa e o socó.
O lenhador e a morte.
O lobo e o dogue.
A gralha e os pavões.
A formiga e a mosca.
O lobo e o cavalo.
A rã e o touro.
O morcego e as aves.
O corcel e o sendeiro.
O lenhador e a mata.
A raposa e as uvas.
O gavião e o sabiá.
O burro e o almocreve.
A rata e o gato.
O lobo e o pastor.
O cachorrinho e o burro.
O gavião e a sua mãe.
O leão e o rato.
A pomba e a formiga.
A porca e o lobo.
O calvo e a mosca.
O cordeiro e o lobo.
O lobo, a raposa e o macaco.
O caniço e o carvalho.
O lobo e o burro.
O veado e suas pernas.
O leão e o macaco.
A pulga e o camelo.
Os carneiros e o carniceiro.
O cavalo e o veado.
A águia e as outras aves.
O leão e a raposa.
O leão e o homem.
As duas panelas.
O cão e o jardineiro.
A doninha e a raposa.
O carreiro em apuros.
O velho barqueiro e o moço.
O corvo e o escorpião.
A cabrita e seu filho.
Hércules e os Pigmeus.
O caçador e a cobra.
A cigarra e o rouxinol.
O hortelão e o burro.
A gralha e a ovelha.
A formiga e a cigarra.
O leão e o burro.
O veado no curral.
O lobo e a raposa.
O caçador e o urso.
O leão e o mosquito.
Esopo e o mal criado.
O solitário e o seu urso.
O feixe de varas.
A lebre e a tartaruga.
A gata mudada em mulher.
A mercadora de leite e seus cálculos.
A peste dos animais.
O lavrador, seu filho e o burro.
A assembléia dos ratos.
Os ladrões e o burro.
A coruja e seus filhos.
Os dois burros.
O rato ermitão.
A águia, a gata e a porca.
A batalha dos ratos.
O burro coberto com a pele do leão.
O galo, o gato, e o ratinho.
As vespas.e as abelhas.
Os touros e a rã.
O burro e a sua prosápia.
Os perus e a raposa.
A avidez castigada.
A torrente e o rio.
O cão fiel.
O rato e o elefante.
Os dois galos.
A raposa sem rabo.
A canoa boiando.
Os dois burros.
O veado e a vinha.
O pobre e o rico.


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APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia


As fábulas constituem meios de inculcação de idéias em várias culturas do mundo, inclusive no Brasil.

São histórias que contêm concepções sobre a natureza física, a organização e funcionamento das sociedades, regras de conduta e comportamento, objetivos de vida que devem ser almejados.

São transmitidas por pais, professores, sacerdotes, até políticos e homens públicos. Estão em livros, peças de teatro, filmes, em todas as formas de comunicação enfim.

No livro, que aqui apresentamos, há várias sínteses das obras de Esopo e La Fontaine. Várias já foram absorvidas e incorporadas à cultura brasileira. Mencionando apenas algumas, temos: “A formiga e a cigarra”, “A galinha dos ovos de ouro”, “A raposa e as uvas”, “A lebre e a tartaruga”, “O lobo e o cordeiro”. Algumas se transformaram em ditados e expressões populares: “mãe coruja”, “burro em pele de leão”, “atirar pérolas aos porcos”, “contar com ovos na galinha”, “morder a mão do dono”, “unidos jamais serão vencidos”. As fábulas contêm a experiência humana de séculos e, por isso merecem ser lidas e admiradas. Mas devem ser analisadas com critério e senso crítico: até que ponto representam interesse predominantes na sociedade? Têm validade nos dias atuais? Correspondem à realidade social e à vida cotidiana? Cabe ao leitor tirar suas conclusões.


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FÁBULA I.
O galo e a pérola.



Um galo andava catando em um monturo vermes ou migalhas que comesse. Deu com uma pérola, e exclamou: “Ah se te achara um lapidário! a mim porém de que vales? antes um grão de milho ou algum bichinho”. Disse foi-se buscando por diante seu parco alimento.

MORALIDADE: A riqueza só tem valor para quem a sabe aproveitar.


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FÁBULA II
O cão e a máscara.



Procurando um osso que roer, encontrou um cão uma máscara: era formosíssima, e de cores tão belas quão animadas; o cão farejou-a, e reconhecendo o que era, desviou-se com desdém.

A cabeça é de certo bonita, disse; mas não tem miolos.

MORALIDADE: Sobram neste mundo cabeças bonitas, porém desmioladas que só merecem desprezo.


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FÁBULA III.
O cão e a carne.



Ia um cão atravessando um rio; levava na boca um bom pedaço de carne. No fundo da água viu a sombra da carne; era muito maior. Cobiçoso, soltou a que tinha na boca para agarrar na outra; por mais, porém, que mergulhasse, ficou logrado.

MORALIDADE: Nunca deixes o certo pelo duvidoso. De todas as fraquezas humanas a cobiça é a mais comum, e é todavia a mais castigada.


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FÁBULA IV.
A mosca e o carro.



Ia uma mula puxando um carro estava ele pesadíssimo; a estrada era pedregosa e cheia de covas, e a mula suava dobrando de esforço, e tendo em paga as chicotadas do arreieiro. Uma mosca que estava então sobre a cabeça do animal, compadeceu-se dele e disse-lhe ao ouvido: “Pobrezinho, vou aliviar-te do meu peso; agora já poderás puxar o carro”.

MORALIDADE: Quanta gente, tendo a importância da mosca, tem igual presunção?


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FÁBULA V.
O homem e a doninha.



Um homem armou uma ratoeira; sucedeu cair nela uma doninha. Vendo-se preso, suplicou-lhe o malfazejo animal que se lembrasse dos benefícios que lhe havia feito, limpando-lhe a casa de ratos e de animais daninhos. Não serei ingrato, respondeu-lhe o homem, pois nada fizeste com tenção de servir-me; só tratavas de fartar-te: se ratos não houvesses achado, terias despovoado o meu galinheiro.

MORALIDADE: Muitos querem que aceitemos como obséquio o que só fazem por prazer ou utilidade própria.


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FÁBULA VI.
O Sol e as rãs.



Correu boato de que o sol ia casar-se; e logo as rãs se assustaram, multiplicaram orações para que tal não acontecesse. Um Sol já nos custa a suportar: com a sua presença os charcos e os paúes ficam secos; mal podemos achar um ou outro esconderijo que nos conserve algum fresco, alguma umidade: o que será se, casando, tiver filhos?

MORALIDADE: É prudente evitar que se multipliquem os maus.


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FÁBULA VII.
A galinha dos ovos de ouro.



Tinha certa velha uma galinha que lhe punha ovos de ouro; e bem que raros fossem, davam-lhe para viver em abastança. Um seu afilhado continuamente lhe dizia: “Como pode minha madrinha esperar pelos ovos desta galinha? Se põe ovos de ouro, é por certo toda de ouro; matemo-la”. A velha por fim cedeu. Morta a galinha, era por dentro como todas as galinhas.

MORALIDADE: Contentemo-nos, agra­de­ci­dos, com os presentes que Deus nos dá no tempo e nos períodos que sua sabedoria entende convenientes.


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FÁBULA VIII.
O lobo e o cordeiro.



Estava um cordeiro bebendo água na parte inferior de um rio; chegou um lobo, e cravando nele torvos olhos, disse-lhe com voz cheia de ameaça: “Quem te deu o atrevimento de turvar a água que pretendo beber?” — Senhor, respondeu humilde o cordeiro, repare que a agua desce para mim: assim não a posso turvar. — Respondes, insolente! tornou o lobo arreganhando os dentes ;já o ano passado falaste mal de mim. — Como o faria, se não tenho seis meses então ainda não tinha nascido. — Pois se não foste tu, foi o teu pai, teu irmão, algum dos teus e por ele pagarás. E atirando-se ao cordeiro, o foi devorando.

MORALIDADE: Foge do mau, com ele não argumentes: as melhores razões te não poderão livrar da sua fúria. Evita-o fugindo.


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FÁBULA IX.
O cão e a ovelha.



Um cão pôs demanda a uma ovelha, dizendo que lhe havia emprestado, para matar-lhe a fome, um belo osso de presunto. A ovelha respondia que nunca lhe pedira emprestada coisa alguma, e ainda menos ossos de presuntos, pois nem seus dentes nem seu estômago se acomodavam em semelhante alimento. Mas, pobre dela! o cão achou por testemunha um lobo, um urubú e um gavião, e jurando os três terem visto a ovelha receber do cão presunto, roe-lo faminta, foi ela condenada.

MORALIDADE: Por mais razão que tenhas, foge de demandas; ao rico contra o pobre nunca falta apoio de testemunhas capazes de tudo.


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FÁBULA X.
O lobo, o veado e a ovelha.



Tendo-se ajustado com um lobo, foi um veado ter com uma ovelha, e lhe pediu que restituísse o trigo que lhe havia emprestado. A ovelha, vendo o reforço a que o impostor havia recorrido, percebeu que só por manha livrar-se-ia. Bem, disse; mas ando agora em tais apuros, que não posso cuidar de negócios, nem tenho um grão de trigo. Volte daqui a oito dias, e conversaremos. Retirou-se o veado., satisfeito com a esperança. Passados alguns dias, encontrando-se com ele, a ovelha o desengana, declarando que nada lhe devia, e nada lhe havia de dar.

MORALIDADE: Quando contra nós alguém se levanta em presença de nossos inimigos, manda a prudência calar, até que venha a oportunidade de nos desagravarmos.


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FÁBULA XI
O galgo velho e seu amo.



Bom caçador fora outrora um galgo; sempre farejava e descobria a presa, e quanta farejava, pronto fisgava. Seu amo enchia-o, de afagos e carinhos. Mas para os galgos, como para a gente, passam os anos, chega a velhice; o pobre galgo perdeu o faro, perdeu os dentes, e já não descobria a presa; e se a descobria, a não apanhava. Uma vez, um coelho, que ele conseguira apanhar, safou-se-lhe da desdentada boca. O amo chega, e irado o açoita.

Senhor, disse-lhe chorando o velho, pois não mereço, em atenção aos serviços passados, não mereço alguma compaixão?

MORALIDADE: A lição deste galgo vos diz como sereis tratados por aqueles a quem já não puderdes servir.


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FÁBULA XII
O leão, a vaca, a ovelha e a cabra.



Fizeram sociedade (quem tal diria?) uma cabra, uma vaca, e uma ovelha, com o leão, rei dos animais, e de parceria se puseram a caçar. Pilharam um veado, e para logo felicitando-se e esquecendo o cansaço, dividiram-no, em quatro partes. Chegou o leão e disse: “Esta é minha, pela lei do nosso ajuste: esta outra quero-a para mim, porque sou rei dos animais; a terceira me haveis de dar em obséquio à minha valentia; e quem tiver o arrojo de bulir na quarta há de haver-se comigo”. Os parceiros calaram-se: e que haviam de fazer? antes perder o seu quinhão do veado, do que ter a mesma sorte que ele.

MORALIDADE: Em tudo lidai com os vossos iguais; pois sereis os primeiros que pagareis a superioridade de vossos aliados.


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FÁBULA XIII.
A rã e o rato.



Desejava um rato passar um rio; porém tinha medo, não saber nadar. Ofereceu-lhe uma rã os seus serviços, pronta a levá-lo para outra banda, se quisesse atar-se com ela. Consentiu o rato, e com um cordel amarrou uma das suas patas, e atou na outra ponta o pé da rã. Entraram na água; a maliciosa rã, escarnecendo do companheiro, procurava, mergulhando, puxá-lo para o fundo e afogá-lo. O rato forcejava em resistir-lhe. Nesta lida estavam, quando vem voando um gavião; dá com eles, e de ambos faz seu almoço.

MORALIDADE: Raramente os maus triunfam: se conseguem prejudicar os bons que neles se fiam, acham logo outro mau que os castiga.


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FÁBULA XIV.
O ladrão e o cão.

Quis um ladrão entrar em uma casa; mas para guardá-la havia um cão, que com seus latidos o impedia. Para fazê-lo calar-se, o ladrão atirou-lhe um pedaço de pão. Bem te entendo, disse o cão, queres que por esse pão te venda o meu senhor que me dá de comer toda a minha vida, e que me confiou a defesa do que é seu; guarde teu pão; hei de ladrar até que acorde a gente da casa; e se te pilho, fisgo-te os dentes que te hão de curar do ofício. Não podendo corromper essa fidelidade, nem iludir essa vigilância o ladrão foi ver se achava alguma casa mais descuidada.

MORALIDADE: Não acredites de leve na generosidade de quem mostra querer obsequiar-te, e nunca, por consideração alguma, atraiçoes aos que em ti houverem confiado.


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FÁBULA XV.
A mosca e o coche.



Ia um coche com excesso carregado, e as vigorosas mulas que o puxavam por entre as pedras e lamas do caminho, pouco adiantavam. Animava-as o cocheiro com a voz, incitava-as com o chicote. Entretanto esvoaçava de uma para outra, em continua lida, uma mosca importuna fazendo o seu zunido. Por fim, venceu o coche as dificuldades do caminho: Graças a Deus, exclamou a mosca, cansei-me e afadiguei-me; mas enfim eis aí desembaraçado o coche; como não estariam essas pobres mulas, e esse pobre cocheiro, se lhe não tivesse valido!

MORALIDADE: Moscas destas não são raras de encontrar em toda a casta de negócios.


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FÁBULA XVI.
Os membros e o estômago.



As mãos e os pés revoltaram-se um dia. Trabalhamos tanto, estamos em contínuo lidar e tudo é em proveito do estômago, que aí fica folgado, empregando em vantagem sua quanto adquirimos. Não estamos mais por isso, queremos folgar, e viva o estômago como puder. Admoestações, rogos, instâncias, nada valeu. O estômago ficou em jejum; mas para logo todo o corpo caiu em debilidade; braços, pernas, pés e mãos foram dos primeiros a sentir um entorpecimento, uma languidez que os assustou; compreenderam que iam morrendo; voltaram pois ao seu antigo ofício, e dentro em pouco, graças ao condescendente estômago, se acharam restituídos à antiga robustez.

MORALIDADE: Todos somos membros de um vasto corpo, que é a sociedade; cada um exerce funções especiais, mais subidas, mais humildes, porém todas indispensáveis pára a prosperidade e até para a existência de todos.


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FÁBULA XVII.
O parto da montanha.



Uma montanha começou a dar urros e berros, que a tudo assustavam. “O que será, o que não?” perguntavam todos inquietos. É a montanha que está para parir. “Que imenso monstro, Deus se condoa de nós, será o seu filho!” dizia a gente. Vai se não quando pare a montanha um ratinho.

MORALIDADE: Os que prometem mundos e fundos espantam-nos a final com o nada que dão de si.


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FÁBULA XVIII.
A serpente e a lima.



Entrando uma serpente na casa de um ferreiro mordeu em uma lima, e como lhe esta resistisse, com mais força lhe aplicou os dentes; porém em vez de conseguir cravá-los, ficaram-lhe eles abalados, e a boca cheia de sangue. Então a lima lhe disse: e o que fazes, néscia, não vês que sou de aço, e de boa têmpera! Nem todas as serpentes do mundo me podem fazer mal; inerte lhes resisto, e se persistem, em pouco tempo ficam desdentadas.

MORALIDADE: Uma vida honesta e pura é como a lima: por mais que a serpente da calúnia lhe queira cravar os dentes, nada consegue.


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FÁBULA XIX.
O leão velho.



De velho e enfermo jazia moribundo um leão que, em moço, havia sido o terror das brenhas. Apareceu um javali, e, para vingar-se da antiga injúria, deu-lhe com o focinho, e foi-se; após o javali veio um touro; seguiram-se outros animais e cada qual se desforrava a seu modo. O leão sofria calado. Veio por fim um burro, e deu-lhe um coice: o leão não pode conter-se: Até aqui sofri resignado, disse, e a quantos insultos recebia opunha a lembrança do que tinha sido outrora, quando até do meu rugido todos esses tremiam; mas agora tu também, tu miserável burro!... Isto é morrer duas vezes!

MORALIDADE: Quando a desgraça acomete um homem, não falta quem venha com ele ajustar contas: o homem nobre e infeliz tudo sofre resignado; há porém burro tão burro e tão vil, que torna impossível a resignação.


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FÁBULA XX.
A águia e a tartaruga.



Uma águia agarrou em uma tartaruga; mas embora faminta, não sabia como haver-se para comê-la; porquanto na eminência do perigo, a tartaruga se encolhia toda na sua concha, e nem bico nem garras podiam romper essa muralha. Vendo-a assim, lidar debalde, outra águia matreira lhe disse: A presa é boa, minha filha; carne de tartaruga é manjar delicado; mas nunca poderás pôr-lhe o bico se te eu não valer. — Pois vale-me e dou-te metade da presa. — Vá feito: sobe o mais que puderes nas nuvens, e de cima deixa cair a tartaruga, a concha ficará quebrada. Dito e feito; a pobre tartaruga, mal defendida contra tamanho baque, foi o almoço de ambas.

MORALIDADE: Em tudo menos vale a força de que o jeito; em tudo a experiência é proveitosa.


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FÁBULA XXI.
O mono e a raposa.



Tinha uma raposa um rabo tão comprido, que andava sempre caído, sem graça, e varrendo o chão. Um mono, que tão pelado tinha o seu, que andava sempre descomposto, lhe disse: “Camarada, podes servir-te a ti própria, servindo-me a mim; dá-me o que de rabo te sobra, para suprir o que me falta; assim ficarei eu em estado de poder passear sem pejo, e tu ficarás mais elegante e mais leve”. — Antes quero ter o meu rabo assim mesmo pesado, e arrastando, do que dar-to. Cada um com o que é seu, cada um por si, disse a raposa.

MORALIDADE: Há muitos que antes querem conservar coisas inúteis e até nocivas, só por serem suas, do que dá-las a quem, aproveitando-as, retribuir-lhes-ia com tesouros que nunca são excessivos às bênçãos dos desvalidos.


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FÁBULA XXII.
Os dois viajantes.



Dois viajantes perderam-se no caminho, e depois de muito terem andado, chegaram a uma terra desconhecida. Os guardas da fronteira os prenderam e levaram à presença do rei. Guardas, rei, todos na terra eram macacos. O que vos parece de mim e do meu povo? perguntou-lhes o rei depois dos primeiros cortejos. — Senhor, disse um dos viajantes, facilmente se vê que sois o magnânimo rei de um povo generoso e ilustrado. O rei sorriu-se benigno. Senhor, disse o outro, basta ter olhos para ver que vosso povo se compõe de monos, e tudo, até esse feio rabo que ali se enrosca detrás de vosso trono, diz que também sois mono. Tanto bastou para que os guardas do rei caíssem sobre o indiscreto, e o esquartejassem; o outro foi muito agasalhado, e retirou-se cheio de presentes.

MORALIDADE: A verdade irrita os maus, a mentira é por eles bem acolhida.


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FÁBULA XXIII.
As duas cadelas.



Sentindo-se na hora de parir, e não tendo onde acolher-se, pediu uma cadela à sua camarada que lhe emprestasse a sua cama. A outra, compadecida, atendeu-lhe, prometendo ela retirar-se logo que os filhinhos se pudessem arrastar. Chegou o dia da restituição, e não mostrando a hóspede muita vontade de cumprir o ajuste, pediu-lhe a compassiva o seu palheiro. A parida, porém, arreganhando os dentes: Retirar-me-ei, disse, se fores capaz de deitar-me fora a mim e aos meus. Tinha então consigo meia dúzia de cachorrinhos que já ladravam e sabiam morder.

MORALIDADE: Há assim muitos que, como a cadela mal agradecida, humildes imploram a caridade, e depois se levantam contra quem lhes valeu.


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FÁBULA XXIV.
O homem e a víbora.



Em manhã de rigoroso inverno ia um pobre camponês para seu trabalho; viu uma víbora, tolhida de frio, que estava morrendo. O pobre na lição do sofrimento aprende a ser compassivo; condoído, o camponês não refletiu; tomou a víbora, agasalhou-a no seio. A malvada mal sentiu a benígna influência ao calor, cobrou forças, e com elas a natural perversidade, e com venenosa mordidela retribuiu ao imprudente o seu beneficio.

MORALIDADE: Manda a humanidade que socorramos ainda mesmo aos maus; cumpre porém ver que não seja dando-lhes meios de continuar as suas maldades.


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FÁBULA XXV.
As pombas e o gavião.



Perseguidas pelas aves de rapina, as pombas julgaram conveniente valer-se do gavião. Generoso, outorgou-lhes este a sua proteção, e foi as matando e comendo que era um regalo. Entregues sem defesa a desapiedado inimigo: Com, razão padecemos, dizem as pombas; quem nos mandou querer protetores?

MORALIDADE: Fujamos de protetores de ofício, especialmente quando são de conhecida avidez e perversidade; caro custa-nos tal proteção.


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FÁBULA XXVI.
O leão e o burro.



Ia um burro ufano de si, pois o arrieiro lhe havia posto campainhas, cascavéis e penachos, e o coitado achava-se formosíssimo. Encontrou um leão: “Tira-te daqui, disse-lhe arrogante, não me embaraces o caminho”. 0 leão parou vendo tanto atrevimento, irresoluto se o devia castigar: por fim sorriu-se, e disse: “Não; carne tão vil desdouraria as minhas garras”. Riu-se outra vez e foi-se.

MORALIDADE: Há insolências que partem de tão baixo, e a tão alto se dirigem, que só o desprezo merecem.


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FÁBULA XXVII.
O pavão e Juno.



Um formoso pavão excitava com a beleza das suas penas a curiosa atenção de alguns homens que o estavam admirando, e que lhe não poupavam gabos. Súbito ouviram estes o cantar de um rouxinol, e logo tudo esquecendo, procuram chegar-se para o lugar de onde partiam tão suaves melodias. Abandonado, o pavão encheu-se de raiva, e queixoso foi ter com Juno. Porque há de um passarinho, feio e sem graça, cantar melhor do que eu; porque me não deste a voz do rouxinol? perguntou. Não sejas ingrato, respondeu lhe Juno; cada animal tem suas prendas, nenhum tem tudo; à águia coube a força, ao rouxinol a voz, a ti essa plumagem recamada de estrelas e de esmeraldas; não és dos mais mal aquinhoados. — Sim; mas quisera cantar como o rouxinol, tornou o pavão.

MORALIDADE: Poucos se contentam com o que têm, todos invejam o alheio, e assim se fazem desgraçados.


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FÁBULA XXVIII.
O galo e a raposa.



Vendo aproximar-se uma raposa, um galo trepou com as galinhas a um alto pinheiro. A tanta altura não podia alcançar o malfazejo bicho, procurou pois valer-se da astúcia. “Olá! Sr Galo, disse, de que tem medo? porque sobe tão alto? pois ignora que está feita a paz eterna entre todos os animais! pois ainda não lhe foi comunicada tão grata noticia? Neste caso, quero alvíssaras. Ora desça, abracemo-nos, festejemos este dia de universal reconciliação”. Percebeu o galo a mentira; dissimulando porém, e não se dando por achado: Muito folgo com a notícia, respondeu, e já desço para mostrar-lhe o meu contentamento: mas aí vem chegando uns cães, junto com eles melhor festejaremos tão bela paz.

“Aí vem cães?” disse a raposa; “pode ser que os malditos ainda não saibam da paz”. E safou-se mais ligeira do que tinha vindo.

MORALIDADE: Não crer de leve é o conselho da prudência; reconhecendo a impostura, dissimular é o melhor meio de evitá-la.


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FÁBULA XXIX.
A águia e a raposa.



Uma águia tinha filhos; para os alimentar, apanhou os filhos de uma raposa. A aflita raposa suplicou, instou; nada conseguiu. Altiva e desdenhosa, a águia zombou dos seus rogos, e preparou-se para devorar os raposinhos. Então a raposa valeu-se de bem inspirado estratagema: começou a cercar com muita palha e folha seca a árvore em que tinha a águia o ninho, e pôs-lhe fogo. Vendo-se ameaçada pela labareda, e reconhecendo que perdidos estavam os seus filhos, a águia pediu paz; entregando os raposinhos, a conseguiu.

MORALIDADE: Forte ou poderoso não ofendas a quem supões fraco; pois hás de ter um lado vulnerável, e o fraco saberá descobri-lo.


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FÁBULA XXX.
O bezerro e o boi velho.



Tinha um lavrador um boi já idoso, mestre no ofício de puxar carros; deu-lhe por companheiro um bezerro ainda mal domado e todo fogo. O boi velho viu um insulto em semelhante parceria: “Olha”, disse-lhe o lavrador, “não te emparelho com ele na minha estima; junjo-o comigo, para que com o teu exemplo aprenda, e melhor aproveite, as lições que lhe dará meu aguilhão; entretanto, como é ele robusto, poderás tu próprio deixar-lhe carregar o maior peso, e de tanto te acharás aliviado”.

MORALIDADE: Cumpre dar aos mancebos boa companhia de homens sisudos e circunspectos; uns e outros com isso aproveitam.


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FÁBULA XXXI.
As rãs querendo um rei.



Amigas de novidade, quiseram um dia as rãs ter seu rei, e pediram-no a Júpiter. O deus prestou-se benigno a seus desejos, e atirou ao charco em que viviam um pedaço de pão. Com o baque a água estremeceu, e as rãs, cheias de pavor, esconderam-se no fundo mais fundo, no lodo do charco. Para logo porém foram cobrando alento; levada pela curiosidade, uma sobe à tona d’água, levanta a cabeça e põe-se a admirar o seu rei. Imita a outra, e outra, e todas. E tomam ânimo, e aproximam-se nadando; vendo que o rei nem se movia, põem do lado toda a timidez, e começam a saltar sobre a inerte majestade.

Não era isso que queriam as rãs; ei-las de novo ante o trono de Júpiter, queixosas do logro que lhes havia pregado. Já que por bom e manso vos não serve o rei que vos dei ides ficar satisfeitas, disse o deus, cansado desta tão louca importunação. E deu-lhes a cobra, a cobra que de hora em hora abria a goela, e engolia alguma de suas súditas.

MORALIDADE: Contentemo-nos com o que temos; não queiramos novidades.


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FÁBULA XXXII.
O lobo e a garça.



Voraz, como sempre, um lobo, estando a comer, engoliu um osso. Ficou-lhe este atravessado na garganta, e o sufocava. Nesta aflição viu ele uma garça de compridíssimo pescoço, e suplicou-lhe que lhe valesse, prometendo mundos fundos, se lhe arrancasse o osso da goela. Compadecida a garça o fez. Livre o lobo recusou dar-lhe o que prometera. Ingrata, não vês que és tu que me deves retribuir a generosidade; dentro da minha boca esteve a tua cabeça, podendo apertar os dentes, deixei que te safasses! e queres paga! A garça calou-se: o que havia de fazer? Emendar a mão, e nunca valer a lobos.

MORALIDADE: Quantos na hora dos apuros tudo prometem aos homens, aos santos, a Deus e depois esquecem o prometido, e chasqueam de quem neles se fiou.


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FÁBULA XXXIII
O lobo e o cabrito.



Uma cabra, indo pastar, deixou em casa o filho dizendo-lhe que não abrisse a porta a urso ou a lobo; pois mal lhe iria. Para melhor livrá-lo, ajustou com ele uma senha: Quando eu voltar disse, para que me abras, hei de bater três vezes, dizendo — abre que está frio: — só então abrirás. Um lobo estava à espreita, e ouviu a senha; daí a algumas horas voltou, bateu na porta, e disse: — Abre que está frio. — Por mais, porém, que disfarçasse a voz, e procurasse imitar a da cabra, o cabrito teve desconfianças, e chegando-se à porta, disse: Minha mãe, mostre pela fresta a sua pata branca; só então lhe abrirei. Pata branca é coisa de que o lobo nunca dispôs; o nosso espertalhão não teve remédio senão retirar-se em jejum.

MORALIDADE: Nunca sobram precauções ; se fiando-se à senha, o cabrito tivesse aberto a porta, onde teria ido parar?


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FÁBULA XXXIV.
O corvo e a raposa.



Um corvo pilhou um queijo, e com ele no bico foi pousar em uma árvore. Pelo cheiro atraída, acudiu uma raposa, e logo assentou que seria ela quem comesse o queijo; mas como! a árvore era alta, e o corvo tem asas, e sabe voar. Recorreu pois a raposa às suas manhas: Bons dias, meu amo, disse; quanto folgo de o ver assim belo e nédio. Certo entre o povo aligero não há quem o iguale. Dizem que o rouxinol o excede, porque canta; pois eu afirmo que V. Exa. não canta porque não quer; se o quisesse, desbancaria a todos os rouxinóis. Ufano por se ver com tanta justiça apreciado, o corvo quis mostrar que também cantava, e logo abre o bico, cai-lhe o queijo, a raposa o apanha, e safa-se dizendo: Adeus, Sr. Corvo, aprenda a desconfiar das adulações, e não lhe ficará cara a lição pelo preço desse queijo.

MORALIDADE: Desconfiai quando vos virdes mui gabados; o adulador escarnece de vossa credulidade, e prepara-se para vos fazer pagar por bom preço os seus elogios.


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FÁBULA XXXV.
As lebres e as rãs.



Corridas pelos galgos, de tudo espantadas, vivendo em contínuo sobressalto, reconheceram as lebres que um viver assim era um constante penar e resolveram morrer deitando-se todas juntas a afogar.

Antes morrer uma vez do que andar morrendo a todas as horas do dia... Enfileiram-se, partem à desfilada, e arremetem para o rio. Súbito salta na água espavorido um bando de rãs. 0h! oh! pois já metemos medo! dizem as lebres; já somos gente! Para que então nos havemos de matar? soframos; pois há quem sofra ainda mais do que nós.

MORALIDADE: Não deve o homem maldizer sua sorte; em posição nenhuma é ela tão má que outra pior se lhe não ache.


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FÁBULA XXXVI.
Os lobos e as ovelhas.



Desde o começo do mundo houve guerra encarniçada entre as ovelhas e os lobos: por serem fracas e incapazes de defender-se, as ovelhas puseram-se debaixo da proteção dos cães. Então os lobos viram-se perdidos; às ocultas, só de emboscada, podiam pilhar alguma inimiga com que matassem a fome. Acudiu-lhes um estratagema: humilharam-se, pediram pazes; fizeram com que as crédulas ovelhas se convencessem de sua credulidade; o que aliás lhes foi fácil, pois ofereceram dar como reféns os seus filhos. As ovelhas tudo aceitaram, e até calcularam a grande economia que fariam, dispensando a guarda e a proteção dos cães.

Fez-se a paz, foram dados os reféns, despedidos por economia os cães. Uma noite, os filhos dos lobos põem-se a uivar: acodem os pais bradando que estão maltratando seus filhos, que assim faltam à fé prometida, e restauram a guerra, e logo vão fazendo tal carnificina, que de ovelhas não sabemos como alguma escapou para continuar a raça.

MORALIDADE: No mau que diz arrepender-se não se deve confiar antes de boa prova.


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FÁBULA XXXVII.
O rato da cidade e o do campo.



Um rato que morava na cidade, foi dar um passeio ao campo. Recebeu-o e agasalhou-o um amigo que o levou para os seus palácios subterrâneos, e deu-lhe um banquete de ervas e raízes. Maldizendo em presença de tais iguarias a louca lembrança do seu rústico passeio, o rato da cidade, obrigado a jejuar, disse por fim: “Amigo, tenho dó de ti; como te podes resignar a semelhante passadio? vem comigo para a cidade, verás o que é fartura, o que é viver”. O outro aceitou. À noitinha estavam ambos em uma bela e rica residência, em bem provida despensa; queijos, lombos, o perfumado toucinho, tudo os incitava; desforrando-se de sua longa dieta, o rato do campo regalava-se. Súbito range a porta, entra o despenseiro: vem com ele dois gatos. O rato da casa achou logo o seu buraco; o hóspede, sobressaltado, pulando de prateleira em prateleira, mal escapou com a vida, e despedindo-se do amigo: “Adeus, camarada”, disse, “ficai-vos com as vossas farturas; mais vale magro e faminto no mato, do que gordo na boca do gato”.

MORALIDADE: Sem sossego de espírito de que valem os outros bens?


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FÁBULA XXXVIII.
Os pássaros e a andorinha.



Em um campo muito tempo abandonado, e que por isso tinha se coberto de plantas agrestes, de cujas sementes se alimentavam muitas famílias de pássaros, apareceram um dia alguns homens de enxada na mão, revolvendo a terra, e semeando tinhaça. Uma andorinha que muito tinha viajado, e portanto ganhado experiência, convocou em assembléia todo o povo de penas e disse: Não é de bom agouro o que esses homens estão fazendo; da semente que deitam na terra há de nascer linho; com ele farão cordéis, laços, redes. Enquanto, pois, é tempo, caiamos na sementeira, não deixemos que brote um só grão. Os passarinhos puseram-se a rir e a chasquear. A andorinha retirou-se triste, e a sementeira ficou salva. Mas daí a pouco, redes e laços multiplicaram-se, e a imprudente passarinhada deu boas ceias aos lavradores.

MORALIDADE: Não escarneças de quem te dá bons conselhos; quando não, algum dia no infortúnio dirás ah! se tivesse pensado!


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FÁBULA XXXIX.
A raposa e o socó.



Convidou a raposa a um socó para jantar em sua companhia; devia-lhe obrigações, dizia, e queria obsequiá-lo. O socó aceitou o convite, e foi-se preparando para fazer honra ao banquete de sua amiga. Essa, porém, fez servir uma espécie de sorda, posta em um prato raso. Devia estar saborosa, pois só o seu perfume despertava o apetite; mas como a sorveria o socó com seu comprido e agudo bico? Multiplicou bicadas, magoou-se todo, e ficou jejuando, entretanto a raposa foi lambendo, e deu com tudo no bucho. Desejoso de vingar-se, mas ocultando sua tenção, o socó agradeceu a raposa a fineza do convite, e disse que lho queria retribuir, convidando-a para daí a oito dias jantar em sua casa. A raposa, que é voraz, aceitou pressurosa. O vingativo socó apresentou-lhe em um vaso de comprido gargalo uma espécie de carne desfiada. No vaso não podia à raposa introduzir o focinho para alcançar a comida, e o socó de cada bicada arrancava e engolia um comprido naco. Quis enfadar-se a raposa, refletiu porém, e vendo que era uma justa desforra da sua graça, meteu o caso à bulha, e foi-se em jejum, ainda que não emendada.

MORALIDADE: Não zombes com os outros, pois achar-te-as exposto a iguais zombarias.


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FÁBULA XL.
O lenhador e a morte.



“Que lidar insuportável este a que me sujeita a sorte!” exclamou um pobre lenhador atirando ao chão um grande feixe de lenha que vinha carregando. “Desde que amanhece vou para o mato, e até que anoitece meus pobres braços não largam o machado. E com tanto trabalho, mal tenho um bocado de pão negro e duro para matar-me a fome, mal velhos andrajos, que me não resguardam do frio. De que me serve a vida? Morte, vem valer-me”. Nesse momento apareceu-lhe a morte. “O que queres?” disse-lhe; “aqui estou para te servir”. O lenhador estremeceu, e já arrependido dos seus votos, lhe disse: “Chamei-te para me ajudares a carregar a minha lenha”.

MORALIDADE: Os que nas aflições da vida invocam a morte, grande logro levariam, se fossem atendidos.


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FÁBULA. XLI.
O lobo e o dogue.



Magro e faminto lobo encontrou um nédio e gordo dogue. Veio-lhe vontade de mandá-lo para o bucho; mas o cão mostrava não ser dos que se deixam facilmente vencer. Mudou, pois, de parecer, e tendo refletido, disse: Muito folgo, primo, de ver-vos assim tão belo, e de pelo tão luzido, enquanto ando eu sempre magro e arrepiado. “Se fizesses o que eu faço, tornou-lhe o dogue, viverias como vivo. Moro em uma casa em que todos me querem bem; tratam-me como um duque: e só tenho o trabalho de ladrar à noite, quando dou fé de ladrões. Se te agrada esse ofício, eu te apresentarei a meu amo, e, por mim recomendado, serás aceito”. O lobo não soube como agradecer.. Puseram-se a caminho. Então reparou o lobo no pescoço do dogue, e perguntou-lhe: “O que é isto, primo? tens o pescoço esfolado?” — Não te dê isso cuidado, tornou-lhe o cão; de dia, para que não morda aos que entram em casa, prendem-me a uma corrente; porém de noite estou solto, e posso fazer o que me dá na cabeça. — Então de dia estás acorrentado por semelhante preço não quero a tua fartura; antes livre e faminto, do que cativo e farto.

MORALIDADE: Não há cômodos nem prazeres que compensem o sacrifício da liberdade.


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FÁBULA XLII.
A gralha e os pavões.



Estando na muda os pavões, uma gralha. seduzida pelo brilho das penas que deles caíam, apanhou-as e com elas se enfeitou. Desdenhando das irmãs, foi então meter-se em um bando de pavões. Estes, porém, logo a reconheceram, e às bicadas lhe arrancaram as penas que lhe não pertenciam; e com elas, pele e carne. Ensangüentada, voltou a coitada para suas irmãs, que só depois de muito a terem, chasqueado, perdoaram ao seu arrependimento.

MORALIDADE: Nunca por ostentação ou interesse dês o alheio por teu; pois a fraude é logo descoberta, e o castigo imediato.


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FÁBULA XLIII.
A formiga e a mosca.



Altercavam uma vez a mosca e a formiga sobre nobreza e fidalguia. Eu, sim, dizia a mosca, eu sou fidalga; vivo sem trabalhar, passeio todo o dia por onde quero, janto à mesa dos reis, entro nos templos, pouso nos lugares mais sagrados; as faces, o colo da dama mais formosa e recatada são meus tronos. — É assim, diz a formiga, e não te invejo; de toda a parte te enxotam por imunda, todos te praguejam por importuna, e mais vives em esterqueiras do que em palácios; mas quando vem o frio, o que é de ti? Ficas mirrada pelas paredes. Pois eu trabalho sempre, e sem descanso; aí a minha nobreza a ninguém importuna, e não há estaçâo que me ache desprovida.

MORALIDADE: Entre o parasita e o homem laborioso que com o suor do seu rosto ganha parco alimento, vai a diferença que separa a mosca da formiga. Trabalhai, como esta; conquistai pelo trabalho a doce independência, ganhareis, em duplo galardão a estima própria e a de todos.


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FÁBULA XLIV.
O lobo e o cavalo.



Pastava em bela campina um nédio cavalo; um lobo o viu, é como trazia jejum de quinze dias, assentou em devorá-lo; mas o cavalo era forte, e ele... quinze dias de jejum dão cabo do mais valente. Recorreu, pois, à astúcia. Aproximou-se, e ofereceu os seus serviços, dizendo que, como médico que era, estudara botânica, e podia mostrar-lhe das ervas da campina em que pastava quais as boas, quais as que lhe podiam fazer mal. Ai meu amigo, disse-lhe o cavalo, chegaste muito a tempo; não para me resguardares de más plantas, pois também as sei distinguir; porém para curar-me de grave incômodo; há dias magoei um pé; parece que se está formando um tumor; olha. Então levantou a pata, e assentou-lhe um formidável coice que lhe quebrou a queixada.

MORALIDADE: Se todos os lobos charlatães encontrassem cavalos como o desta fábula, não veríamos o triunfo de tanta impostura.


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FÁBULA XLV.
A rã e o touro.



Soberbo e possante touro passeava pelas vizinhanças de um charco; viu-o uma rã, e logo dominada pela inveja, quis igualá-lo. Começou a inchar-se, a inchar-se, e quando mais não pôde, perguntou às outras rãs: que lhes parece, manas? — já não estou do tamanho do boi? — Nem para lá caminhas, respondem-lhe elas. A rã fez dobrado esforço: E agora? disse. As outras riram-se. Indignada com este escárnio, a rã incha-se tanto, estica a frouxa e tênue pele, que arrebenta.

MORALIDADE: A inveja, vício tão comum, é a origem de todas as desgraças do homem; como a rã, o invejoso quase sempre arrebenta.


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FÁBULA XLVI.
O morcego e as aves.



Houve guerra entre as aves e os outros irracionais; o povo de penas, tendo à frente a águia, o povo de pêlo tendo por chefe o leão, disputavam a primazia. As aves foram vencidas. Entre elas, em razão de ter asas e somente duas patas, militava o morcego; vendo este mal parada a causa dos seus aliados, passou-se para os inimigos. Como é isso? disse-lhe um deles, tu por aqui! pois não és ave? — Ave eu! exclamou o morcego, e o meu pêlo, onde está o meu bico? sou primo irmão do rato; morram as aves! Dá-se um combate, o covarde morcego cai no poder de uma coruja; iam matá-lo, quando ele: “Pois assim desconheceis um dos vossos! exclama; não vedes as minhas asas? vivam as aves!”

MORALIDADE: Morcegos assim não faltam neste mundo; nas discórdias civis só querem eles quinhão de despojos, estão sempre com o vencedor.


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FÁBULA XLVII.
O corcel e o sendeiro.



Ricamente ajaezado, ia um soberbo corcel dar o seu passeio. Pesadamente carregado vinha um sendeiro para o mercado. Encontraram-se. Tira-te daí, miserável, bradou o corcel irado, vê lá que me não sujes. O outro calou-se, e sofreu. Daí a tempos, o cavalo adoeceu, e perdido todo o seu merecimento, foi vendido para cargueiro; puseram-no a carregar carvão. Encontrou um dia o sendeiro. “Irmão! onde está aquela arrogância? onde aqueles jaezes? sendeiro como eu, e ainda menos que eu, carregas carvão! Tira-te daí; vê lá que me não sujes!”

MORALIDADE: Por mais elevados que estejais, não desprezeis ao vosso semelhante; a roda da fortuna desanda tão fácil quão imprevistamente.


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FÁBULA XLVIII.
O lenhador e a mata.



Descuidando-se um dia, um lenhador quebrou o cabo de seu machado, e assim desarmado, deixou em sossego as árvores. Por fim, muito humilde e choroso, foi pedir-lhes que lhe emprestassem um galho, com que pudesse fazer um cabo para o seu machado, declarando que era o único recurso com que ganhava, suando e lidando, o parco alimento de sua numerosa família; dessem-lhe o precioso cabo e prometia não trabalhar mais nessa mata, e respeitar todas as suas árvores e arbustos; não lhe faltaria em que ocupar-se. Movidas de tanta dor e de tanta súplica, confiadas em tão positiva promessa, até as árvores deram o pedido galho. E logo o lenhador pôs ao machado um cabo, novo e forte, e logo viçosos galhos, troncos robustos caíram ao afiado gume de machado, que pouco tempo deixou às árvores para chorarem arrependidas a sua crédula benignidade.

MORALIDADE: Quantos se servem do benefício em dano imediato do benfeitor! Perdoai ao vosso inimigo: mas é de louco dar-lhe meios de continuar a fazer mal.


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FÁBULA XLIX.
A raposa e as uvas.



Estava uma parreira carregada das uvas mais apetitosas e maduras; cada cacho fazia vir um favo de mel à boca. Apareceu uma raposa; como as não cobiçaria? Começou a fazer esforços e diligências por alcançá-las mas qual! estavam muito altas. Por fim vendo perdido o tempo e o trabalho: “Agora reconheço que estão verdes, disse o animal, não gosto da fruta assim.” E foi-se consolada.

MORALIDADE: É costume de muitos desfazer naquilo que não podem possuir. A cobiça consola-se, deprimindo o que não pode alcançar.


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FÁBULA L.
O gavião e o sabiá.



Já tendo crescidinhos os filhos, o sabiá largou uma vez o ninho, para ir em busca de alimento. De volta achou próximo um gavião. Espavorida a mãe com a presença da ave de rapina, não fugiu, pois era mãe, e procurou com súplicas salvar a prole. “Bem,” disse o outro, “não matarei teus filhos, se quiseres cantar alguma coisa que me divirta.” Impondo silêncio à sua aflição, começou o sabiá as suas mais belas, mais suaves melodias. Não presta, não presta, brada o gavião, é velha como minha avó esta música. Disse e ia devorar os filhinhos do sabiá, quando atraído pelo canto chega um caçador, que o mata.

MORALIDADE: O malvado que escarnece do desgraçado, acha sempre castigo imediato.


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FÁBULA LI.
O burro e o almocreve.



Um almocreve tangia um burro que, mais do que carregado, mal podia dar um passo; de tão maltratado o burro sucumbiu; o almocreve o esfolou, e vendeu a pele. Fizeram dela um tambor, sobre o qual andaram sempre tangendo pelas feiras.

MORALIDADE: Há desgraçados que nem depois de mortos descansam.


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FÁBULA LII.
A rata e o gato.



Matreiro gato já velho não podia dar assaltada aos ratos; mais ligeiros do que ele, fugiam-lhe todos. Com os anos, porém, ganhara o gato em indústria o que havia perdido em força e agilidade. E pois envolveu-se todo em farinha, e deu consigo em um canto da despensa, onde ficou quedo e imóvel, como coisa inanimada. Apareceu um rato, e supondo que era coisa de roer, descuidado se aproximou; o caçador filou-o; logo atrai outro, e outro, e quantos apareciam tantos o gato caçava. Veio por fim um: oh! era uma velha ratazana, que de mil combates e ciladas, laços e ratoeiras escapara, até na guerra tinha perdido duas terças partes do rabo. Logo que deu o monte de farinha, parou. “Farinha assim” disse, “nunca vi que tomasse essa forma quando amontoada!” Então farejou: “Este cheiro, nunca farinha o teve igual. Não, farinha não é: ora viva, Sr. gato, divirta-se com essas crianças imprudentes; eu cá bem o conheço, e ainda quando se fizesse de saco, não me pilharia ao alcance das unhas.”

MORALIDADE: Cautela, e mais, cautela nunca por sobeja é condenável.


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FÁBULA LIII.
O lobo e o pastor.



Fugindo de um caçador, veio um lobo esconder-se em uma moita junto da qual estava um pastor, e pediu-lhe obséquio de desviar o caçador, se porventura perguntasse por ele. “Fique certo”, prometeu-lhe o pastor, “hei de dizer que o lobo se foi por ali.” E apontou para direção oposta à em que estava o esconderijo. Chegou o caçador: “Viu você um lobo?” perguntou. — Sim, vi, disse o pastor, e foi-se por ali. O seu dedo porém, atraiçoando a promessa, indicava a moita em que estava oculta a fera. O caçador não deu fé do aceno, e seguiu a direção indicada pela palavra. Mal o viu pelas costas, o lobo saiu da moita. Então, amigo, disse-lhe o pastor, vais-te embora sem agradecer-me? — Não tenho que agradecer-te, respondeu o lobo; pois se escapei devo-o à minha sina, e à precipitação do caçador que lhe não deixou reparar no movimento de teu dedo. Querias, traidor, que me ele matasse! Hás de pagar-me; cuidado com o teu rebanho.

MORALIDADE: Há homens nobres que prometem seus serviços a uns, e depois os levam aos inimigos deles.


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FÁBULA LIV.
O cachorrinho e o burro.



Tinha um homem um cachorrinho e um burro. Toda a vez que voltava da rua, o cachorrinho lhe fazia festa, lhe saltava ao colo; e o senhor o afagava, dava-lhe docinhos, brincava com ele. Via-o o burro, e mordia-se de inveja: assentou de si para si que, se fizesse o mesmo que o cachorrinho, seria tratado da mesma maneira. Vai no dia seguinte, à hora em que seu amo costumava recolher-se, pôs-se à espreita; e mal o vê entrar, começa a zurrar, a saltar, encosta-lhe aos ombros as patas, quer lamber-lhe a cara. Espantado o senhor chama quem lhe acuda; chegam os criados, e a poder de pancadas arrumam o burro na estrebaria.

MORALIDADE: Nada assenta bem senão quando pela própria índole é inspirado: um burro a fazer meiguices faria rir as pedras. Cada qual para o que Deus o fez.


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FÁBULA LV.
O gavião e a sua mãe.



Sentindo aproximar-se a sua hora derradeira, temeu-se um gavião com a lembrança das suas iniquidades, pediu à sua mãe, que fosse aplacar a cólera celeste. “Fá-lo-ei, filho”, respondeu-lhe a mãe; “muito, porém, receio que isso agora não te possa valer, quando não houve iniquidade e sacrilégio que não cometesses.”

MORALIDADE: Na hora da morte o malvado estremece; quanto mais zombou da celeste justiça, mais a teme no momento de perante ela comparecer.


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FÁBULA LVI.
O leão e o rato.



Pôs-se a dormir um leão; uns ratos, cheios de imprudente intrepidez, vieram brincar ao redor dele, e com os seus saltos o acordaram. Todos, fugiram; um único, por mais descuidado, ficou no poder do leão. Felizmente é nobre como um rei, o rei dos animais; condoído dos sustos do mísero ratinho, desdenhou tão mesquinha vingança, e soltou o animalejo. Dai a dias, andando desprevenido, deixou-se o leão enlear em uma rede, e sem embargo da sua força, estava no poder dos caçadores. O ratinho soube deste desastre, e logo foi ter com o seu benfeitor, para retribuir-lhe o favor que dele recebera. De feito, agarrou-se à rede e com tal diligência pôs-se a roer malhas e cordéis, que logo o leão pôde desenlear-se, e voltar para suas brenhas.

MORALIDADE: Uma boa ação nunca fica perdida. Não há quem, por mísero e insignificante, não tenha sua hora de força e valimento.


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FÁBULA LVII.
A pomba e a formiga.



Uma linda pombinha estava à beira de um rio; viu na água agitar-se uma formiga, que por descuidada se ia afogando; pois nesse imenso oceano nada achava a que se segurasse, nada que lhe servisse de tábua de salvação. Condoeu-se a pomba, e atirou na água uma palhinha; aproveita-a a formiga, é levada à praia. Estava salva. Pouco depois, passa um caçador, e vendo a pomba, leva a espingarda ao ombro; ai da pombinha! Mas a formiga tinha visto o caçador e o seu gesto, e logo dá-lhe no pé uma ferretoada; com a dor que sente o caçador perde a mira, e a pomba vai-se, batendo a asa.

MORALIDADE: Ainda sem contar com a gratidão, é sempre bom ser benfazejo.


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FÁBULA LVIII.
A porca e o lobo.



Gemia uma porca com dores de parir; chegou-se um lobo oferecendo-lhe o seu préstimo, como insígne parteiro que declarava ser. Bem entendeu a porca o motivo do fingimento; dissimulando, porém, declarou que, vergonhosa como era, pejava-se de o ver ali, e pedia-lhe que se retirasse, voltando daí a pouco para dar-lhe a ela e aos seus filhinhos os cuidados de sua arte. O lobo, supondo já que a presa era sua, retirou-se condescendente; mas a porca foi logo esconder-se em lugar seguro, em que o lobo não pudesse descobrir os seus filhos.

MORALIDADE: Há perversos tão conhecidos que, embora se apresentem mansos e fagueiros, a ninguém conseguem iludir.


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FÁBULA LIX.
O calvo e a mosca.



Estava um calvo tomando fresco à sua porta; uma mosca importuna vinha de contínuo pousar-lhe na calva; o homem acudia com a mão; ela, porém, ligeira fugia, e depois voltava. Deste modo dava o calvo em si próprio grandes taponas, e a mosca ria-se de gosto. “Ride-vos embora”, disse o calvo; “pouco me doem essas pancadas, e basta que de alguma vos pilhe para vos castigar.”

MORALIDADE: Os importunos riem-se quando vêem malogrados os esforços das suas vitimas para se livrarem deles; basta, porém, que um desses esforços seja bem sucedido, para que paguem por junto o novo e o velho.


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FÁBULA LX.
O cordeiro e o lobo.



Andava um cordeiro em um rebanho de cabras; um lobo o viu: “Coitadinho!” disse-lhe, “como hás de viver aborrecido com gente que não é da tua raça! Vem comigo; quero levar-te à tua mãe.” Não é necessário; fico-te muito obrigado, disse o cordeiro, estas cabras me querem muito, e me tratam com todo o amor que teriam a um filho; aqui, pois, me acho muito bem, e não quero mudar. Foi o que lhe valeu; pois o lobo só queria desviá-lo das cabras e dos seus guardadores para devorá-lo.

MORALIDADE: Se estás bem, tapa os ouvidos às seduções de quem te convidar para mudanças; há cilada no convite.


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FÁBULA LXI.
O lobo, a raposa e o macaco.



O lobo acusou a raposa de lhe haver roubado um quarto de carneiro; foi juiz o macaco. A raposa defendeu-se, e no calor do debate, lobo e raposa lavaram-se reciprocamente as caras com todas as malfeitorias que, em segredo haviam perpetrado. Ouviu-os atentamente e por fim: “Condeno-vos a ambos”, disse, “a ti, raposa, porque roubaste o que de ti reclama o lobo; a ti, lobo, porque ninguém te roubou o que da raposa exiges.”

MORALIDADE: Em contendas entre perversos, tão iguais como a raposa e o lobo, raramente há quem tenha ou quem deixe de ter razão.


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FÁBULA LXII.
O caniço e o carvalho.



Condoo-me de ti, disse orgulhoso o carvalho a um caniço; mal sopra branda aragem, ai estás a inclinar-te, a tremer, a humilhar-te. Faze como eu; por mais rijo que sopre o furacão, oponho me altivo, obrigo-o a quebrar-se de encontro a mim, a desviar-se. — Outro tanto quisera fazer, mas não posso, respondeu o caniço; tu és robusto, e eu fraco, tuas raízes enterram-se rijas pela terra dentro, as minhas ficam-lhe pela superfície. O carvalho sorriu-se desdenhoso. Súbito levanta-se uma formidável ventania; o carvalho quer resistir; com o seu ímpeto ela o arranca pelas raízes; o caniço, porém, havia vergado, havia-se inclinado até o chão, e quando passou o tufão, reergueu-se sem ter sofrido coisa alguma.

MORALIDADE: Quando sopra o vento da adversidade, os soberbos quebram-se, os humildes pouco sofrem.


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FÁBULA LXIII.
O lobo e o burro.



Enfermara um burro; o lobo foi visitá-lo Tomou-lhe o pulso, apalpou-lhe todo o corpo, perguntando-lhe onde lhe doía: “Não sei”, respondeu o enfermo; “onde quer que pões a mão, logo ai me doi; estou certo que apenas te retires ficarei curado.”

MORALIDADE: Basta a presença de charlatães que só têm em mira os bens do doente, para agravar-lhe a moléstia: quando se retira tem este meio caminho andado para a cura.


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FÁBULA LXIV.
O veado e suas pernas.



Um veado foi matar a sede em cristalina fonte, e mirou-se no espelho das águas: “Como são garbosos estes meus galhos”, dizia, “que ar majestoso e elegante dão à minha cabeça! Mas que malditas pernas me deu a natureza! Antes as não tivera.” Nisso ouviu ao longe o latir de uma matilha, e logo pôs-se a correr. Longe do caçador e do perigo o levaram as pernas; já se via salvo, quando os seus galhos enredaram-se com os ramos de uma árvore, e o fazem parar; quanto mais forceja, mais enredado se acha. Chega o caçador e o apanha. “Mal de mim!” dizia o veado, “ainda há pouco praguejei destas pernas que tão úteis me eram, e exultei de júbilo com esses galhos que, sem préstimo algum, causaram o meu cativeiro.”

MORALIDADE: Estimamos muitos vezes qualidades que nos perdem, e maldizemos das que nos servem.


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FÁBULA LXV.
O leão e o macaco.



O rei dos animais convocou-os a todos em assembléia geral para tratar de assuntos graves. Acudiram estes ao convite, que consideravam grande honraria. E o leão lhes disse: “Prestantes e estimadíssimos vassalos, convidei-vos para que me tirásseis de uma dúvida: há muito que quero saber se o meu bafo fede ou cheira; vou consultar-vos a cada um em particular”. Tomou-os um por um, e os consultou, aos que diziam que fedia: “Insolente! tens o atrevimento de dizer que fede o bafo de teu rei!” tornava-lhes o leão, e logo os matava. “Adulador! pois tens cara de dizer-me a mim, que o meu bafo cheira, dizia aos que para lisonjeá-lo mentiam; não gosto de quem me quer enganar!” E os matava. Chegou a vez do macaco: Senhor, há de Vossa Majestade perdoar-me, disse o espertalhão; ando há quinze dias com um defluxo horrível; sai da cama, apresentei-me, só para não faltar à devida obediência: mas não estou em estado de perceber cheiro algum. Riu-se o leão da sutileza, e o macaco foi salvo.

MORALIDADE: Para que ter pressa de dizer o que, não podendo trazer utilidade alguma, só traz comprometimento?


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FÁBULA LXVI.
A pulga e o camelo.



Uma pulga assentou de viajar às costas de um camelo. Assim, tendo casa agasalhada e mesa farta, com todo o cômodo atravessou imensos desertos. Chegando ao seu destino, saltou ao chão, e disse: “Obrigada, irmão, pelo obséquio que me fizeste, carregando-me até aqui, e alimentando-me.”

“O que dizes?” respondeu o camelo, “pois eu te carreguei! Olha, se mo não dissesses, nunca o saberia.”

MORALIDADE: Há quem por estólida vanglória até se gabe de obséquios que nunca recebeu.


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FÁBULA LXVII.
Os carneiros e o carniceiro.



Estavam em um pátio alguns carneiros; veio o carniceiro, levou um; os outros nem se moveram: matou-o, e o seu suplício não tirou os outros da indiferença. Morto este, o carniceiro agarrou em outro; e assim um após outro os foi matando. Restava por fim um único, e esse, conhecendo a sorte que o esperava, lamentou-se dizendo: “Ah! porque a princípio nos não ligamos? porque todos juntos não levamos a marradas esse carrasco! Perdeu-nos a nossa indiferença pela sorte de nossos irmãos.”

MORALIDADE: Nunca vejas com indiferença o sofrimento de teu próximo.


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FÁBULA LXVIII.
O cavalo e o veado.



Disputavam o cavalo e o veado a propriedade de um pasto; o veado porém com melhores armas levava sempre a melhor. Foi, pois, o cavalo implorar o auxílio do homem. Pôs-lhe este na boca um freio, nas costas uma sela, montou; matou o veado.

Obrigado! disse-lhe o cavalo; agora apeia-te, e leva o que caçaste. Não, respondeu-lhe o homem; conheço agora de que vales, e para quanto prestas; ficarás sempre às minhas ordens. Não sou tão tolo que renuncio a tão bela montaria.

MORALIDADE: Nunca te ligues com perversa tenção; pois a dependência criada pela cumplicidade escravisa para sempre.


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FÁBULA LXIX.
A águia e as outras aves.



Mandou uma águia convidar as outras aves da sua vizinhança para um banquete com que pretendia solenizar seus anos. Ao convite acudiram todas. A águia, mal as pilhou no seu palácio, foi-as agarrando e matando.

MORALIDADE: Desconfiai dos obséquios do poderoso; podem ter segunda tenção.


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FÁBULA LXX.
O leão e a raposa.



Deu-se por doente um leão; foram-no cortejar os animais; quantos, porém, entravam na cova, lá ficavam. Chegou, enfim, a raposa; mas, parando na porta, perguntou como estava o enfermo. Entre, disse-lhe a leoa enfermeira. — Nada é necessário, tornou a raposa; a casa deve estar cheia de gente: pois vejo no chão muitas pegadas de quem entra, e nenhuma de quem sai; tantas visitas hão de muito incomodar ao enfermo.

MORALIDADE: Quem olhar para as pegadas dos que o tiverem precedido; evitará muitas desgraças


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FÁBULA LXXI.
O leão o homem.



Altercavam um leão e um homem qual dos dois era mais valente. “Vem comigo”, disse o homem, “vem ver a prova do que afirmo.” O leão, condescendente, foi com ele. Mostrou-lhe o homem uma bela estátua que ornava uma praça; era a de um homem esmagando nos braços um leão. Já vistes? disse-lhe. — Sim, vi, respondeu rindo-se a fera; mas quem fez esta estátua? um homem, ou um leão? Se tens outra prova que dar-me, vamos a ela; senão, vou dar aos teus escultores assunto para outra estátua. E pondo as patas nos ombros do homem, o esmagou.

MORALIDADE: Nunca por louca vaidade obrigues o teu superior a convencer-te da sua superioridade.


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FÁBULA LXXII.
As duas panelas.



Uma torrente levava duas panelas; uma era de barro, a outra de pedra. “Separadas não podemos resistir à força da água”, disse a de pedra à companheira, “une-te a mim, e talvez, resistindo juntas, não vamos assim rio abaixo.” — Não, respondeu a outra; pois se estivermos muito próximas, qualquer encontrão me porá em cacos.

MORALIDADE: Quem se une com mais poderoso, a muito se expõe; correm por sua conta os perigos da união, e a corda arrebenta pelo mais fraco.


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FÁBULA LXXIII.
O cão e o jardineiro.



Em um jardim havia um tanque; um cão, que por ser tolo presumia-se bonito, ia de contínuo mirar-se nele; uma vez tanto se embelezou de si próprio, que descuidado caiu na água. Ia-se afogando; acode-lhe o jardineiro, agarra-o; mas, ou por medo ou por perversidade, o cão fisga-lhe os dentes na mão. Com a dor largou-o o jardineiro e deixou-o afogar-se.

MORALIDADE: Há cães que até na hora do benefício mordem a mão que lhos faz.


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FÁBULA LXXIV.
A doninha e a raposa.



Magra e faminta, uma doninha descobriu uma fresta que dava para um celeiro, e por ela se introduziu. Ai, no meio da abundância, foi comendo, comendo, e engordando à proporção. Quando quis sair, já não podia passar pela fresta. Estais presa, camarada, disse-lhe uma raposa que a viu lidar na fresta; se queres sair, põe-te de dieta, jejua, e quando te achares magra e desfeita, como pudeste entrar, poderás sair.

MORALIDADE: Quem mais tem, mais preso está; a fortuna, em vez de dar independência, obriga a travar relações que são como correntes de ouro que nos manietam.


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FÁBULA LXXV.
O carreiro em apuros.



Em terrível pântano achava-se uma vez, por descuido do carreiro, atolado um carro. O homem gritava, ralhava, aguilhoava os seus bois; dobravam estes de esforço, nada conseguiam; o pegajoso barro prendia as rodas. O carreiro pôs-se então a suplicar a Deus e aos santos, fez-lhes promessas de esmolas, de oferendas, se lhe safassem o carro do perigo. Então ouviu uma voz que dizia: O céu vai-te ajudar: anda lá, toma a enxada, desprende da lama a roda, examina onde mais sólido está o chão; bem, cava e limpa esse maldito barro, empurra a roda; agora toca teus bois. Ótimo! Vê lá o teu carro como vai andando. Cuidado com outros atoleiros! Vendo feito o milagre o carreiro ajoelhou-se agradecido. Então a voz se lhe fez de novo ouvir: Tens razão de agradecer, pois ficaste sabendo que o céu sempre ajuda a quem se ajuda a si próprio.

MORALIDADE: Nos lances da vida aproveitemos a força e a inteligência que Deus nos concedeu, quem por indolente ou por desacoroçoado cruzar os braços, não conte com milagres que o salvem.


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FÁBULA LXXVI.
O velho barqueiro e o moço.



Ia remando um barqueiro velho, embora seguisse a correnteza das águas; um moço que à beira do rio estava brincando, pôs-se a escarnecer dele: Por que te afadigas assim? Para que remas? O correr das águas basta para levar por diante a tua casca de noz. Dá-ma que eu te vou mostrar. O barqueiro, que era velho e experimentado, sorriu-se e respondeu: Se te der a minha barca, e fizeres o que dizes, perdes-te. — Pateta! tornou o moço — Pois toma lá, disse o barqueiro saltando em terra; dá-ma a tua lição; sempre se está em idade de aprender.

O moço saltou no barco, e largando os remos e leme, pôs-se a cantar. A água levou a casquinha de noz com excessiva impetuosidade, e arremessou-a de encontro a uma pedra. Com o abalo interrompeu o moço o seu cantar, viu o perigo, lançou mãos dos remos e do leme; atordoado, não soube como haver-se, implorou o auxílio do velho barqueiro; mas já era tarde. De encontro às pedras o barco quebrou-se, o moço morreu afogado.

MORALIDADE: O imprudente arremessa-se a perigos ocultos que o homem prudente vai desde princípio evitando.


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FÁBULA LXXVII.
O corvo e o escorpião.



Saiu da sua toca um escorpião; avistou-o um corvo, e caindo sobre ele o levou no bico. O escorpião, porém, voltando o rabo, tal ferroada lhe pregou no pescoço que o malvado caiu morto.

MORALIDADE: Muitas vezes o perverso quando pensa que triunfa, é vítima da própria iniquidade.


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FÁBULA LXXVIII.
A cabrita e seu filho.



Pastando descuidada, uma cabrita pisou em uma víbora; ergueu esta a cabeça, e mordeu-a na teta. Logo, porém, veio o filhinho mamar, e com o leite sorveu toda a peçonha, salvando assim a mãe à custa da sua própria vida.

MORALIDADE: Tudo sacrificar, até a vida, pelas nossas mães, é dever que não carece ser ensinado.


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FÁBULA LXXIX.
Hércules e os Pigmeus.



Havia antigamente uma raça de homens que não chegavam a ter três palmos de altura: chamavam-nos pigmeus. Estando uma vez na terra deles, Hércules pôs-se a dormir à sombra de uma árvore. Acudiram os pigmeus ajustados para matá-lo; Hércules porém, pegando na pele do leão que lhe servia de manta, os foi enxotando, como quem enxota mosquitos, e continuou a dormir.

MORALIDADE: Sempre os pigmeus se ajuntam contra o homem esforçado; este, porém, com um simples aceno os faz fugir, e os esmaga.


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FÁBULA LXXX.
O caçador e a cobra.



Ia um caçador de espingarda ao ombro, olhando para cima, a ver se, pousado no alto das árvores, descobria algum pássaro. Assim entretido, não viu a seus pés uma cobra, e pisou nela. A cobra, vingando-se, cravou-lhe no calcanhar o venenoso dente. Sentindo aproximar-se-lhe a morte, o caçador exclamou: “Caro vou pagar a minha loucura; como, tendo eu aos pés o perigo, fui ocupar-me com o que por cima de minha cabeça se passava!”

MORALIDADE: Quantas vezes embebido em grandes esperanças, não vê o homem o perigo que está a seus pés?


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FÁBULA LXXXI.
A cigarra e o rouxinol.



Criava o rouxinol seus filhinhos; e procurando para eles alimento, apanhou uma cigarra. “Não me mates”, disse-lhe esta, “pois somos parentes; ambos só no verão aparecemos, ambos cantamos.” — Insolente! disse-lhe o rouxinol, pois comparas o teu insuportável ciciar com as minhas suaves melodias? Só por isso merecerias morrer.

MORALIDADE: Na hora do perigo, quantas vezes, buscando razões que nos salvem, recorremos a coarctadas que nos comprometem?


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FÁBULA LXXXII.
O hortelão e o burro.



Um pobre hortelão afadigava-se em preparar sua horta, em regá-la, em resguardá-la do sol, esperando que viçosa hortaliça lhe pagasse o seu trabalho e os seus suores. À noite, porém, descuidando-se, deixava que na horta entrasse o seu burro, e no dia seguinte tudo achava estragado e arruinado. Maldizia-se o mísero, e punha-se de novo a trabalhar, para ter à noite o mesmo resultado.

MORALIDADE: Não basta trabalhar, é necessário ter prudência, e saber conservar; mais estraga o desleixo de um minuto do que edifica o cuidado de todo o dia.


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FÁBULA LXXXIII.
A gralha e a ovelha.



Não tendo que fazer, quis a gralha divertir-se com uma ovelha, e pousando-lhe no pescoço, pôs-se a arrancar-lhe a lã e dar lhe bicadas. “Emenda-te deste ruim costume”, disse-lhe impacientando-se a ovelha, “pois se por fraca te suporto, poderás fazer outro tanto com o cão, e ele te dará o pago.” — Não tenhas cuidado, respondeu a gralha; conheço o meu mundo; sei a quem devo respeitar, e de quem posso escarnecer.

MORALIDADE: Há entes que, humildes e até vis com quem deles se pode defender, são da mais insuportável arrogância com os que lhes parecem mais fracos.


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FÁBULA LXXXIV.
A formiga e a cigarra.



Em toda a bela estação uma formiga incansável tinha levado para sua casa as mais abundantes provisões: quando chegou o inverno, estava à farta. Uma cigarra, que todo o verão levara a cantar, achou-se então na maior miséria. Quase a morrer de fome, veio esta, de mãos postas, suplicar à formiga lhe emprestasse um pouco do que lhe sobrava, prometendo pagar-lhe com o juro que quisesse. A formiga não é de gênio emprestador; perguntou-lhe, pois, o que fizera no verão que não se aprecatara. “No verão, cantei, o calor não me deixou trabalhar.” — Cantastes! tornou a formiga; pois agora dançai.

MORALIDADE: Trabalhemos para nos livrarmos do suplício da cigarra, e não aturarmos os motejos das formigas.


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FÁBULA LXXXV.
O leão e o burro.



Foram caçar de parceria o leão e o burro: o leão dispôs a caçada. No meio de um bosque que tinha só uma saída, colocou o burro, cobriu-o de folhas, e disse-lhe que, a um sinal seu, zurrasse com toda a força. Postou-se ele, deu o sinal, e o burro começou a zurrar. Aterradas as feras com semelhante música, precipitam-se para a saída da mata; aí as esperava o leão, e quantas apareceram foram mortas. Cansado o leão por fim, foi ter com o burro, e disse-lhe que bastava. Então que tal? perguntou-lhe o vaidoso bruto; que tal a minha voz? heim! como tudo foge com medo de mim! — Tens razão, disse o leão rindo-se; com teus zurros és capaz de tudo afugentar; eu próprio, se não soubera o que és, teria feito como os mais; se porém fizeste proezas, foi por estares escondido; se te houvessem visto, ter-te-iam apupado.

MORALIDADE: Há fanfarrões assim: a berrarem, são capazes de engolir o mundo; quem os conhece sabe quanto valem.


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FÁBULA LXXXVI.
O veado no curral.



Fugindo aos caçadores, um veado chegou a um povoado, e vendo um curral, meteu-se nele. Então suplicou aos bois que lhe dessem asilo, e o deixassem esconder-se; invocou todos os argumentos que podiam mover a compaixão, até mesmo o parentesco que entre eles estabeleciam os chifres, que os enfeitavam. “Nem tanto é necessário”, disse-lhe um boi velho, “para que te desejemos servir; mas olha que o asilo não te é seguro; aqui vem às vezes um homem de cem olhos, a quem nada escapa; entretanto esconde-te como puderes“. O veado escondeu-se. Vieram os criados dar ração aos bois, passaram, tornaram a passar, e nada viram de novo, e se retiraram. O veado já dava parabéns à sua fortuna, já contava que, amanhecendo o dia, iria correr nos seus livres campos. “Espera”, disse-lhe o boi, “ainda não te felicites; ainda não é passada a hora em que costuma aparecer o homem dos cem olhos.” Mal acabava, eis aparece o senhor: “Que é isso“, disse, “como está sujo este curral! como está mal estendida esta palha! por isso o meu gado não medra. Oh! oh! o que temos ali? Aqueles galhos?” O veado estava descoberto: o homem dos cem olhos o tinha visto.

MORALIDADE: Vigiai pessoalmente o serviço que a outros houverdes cometido; se o não fizerdes, muito vos tereis de arrepender.


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FÁBULA LXXXVII.
O lobo e a raposa.



Uma raposa meteu-se de amizade com um velho lobo, que por forte e previdente, havia ajuntado grossos cabedais. Com tais artes se houve, que o lobo não podia viver sem ela, só das suas graças se ria, só o que lhe ela preparava podia comer, enfim tanto bem lhe quis que em seu testamento a deixou por sua universal herdeira. Mal soube que estava feito o testamento a raposa foi ter com um caçador, e lhe disse: O que me dás, se te levar à cova de um lobo, e to entregar? — Dou-te a sua pele, disse o caçador. — Pois vem comigo. E levou-o à cova em que estava dormindo o lobo. Passou este sem senti-lo do sono para a morte. Já se via a raposa senhora única da pingue herança, e tendo de mais a pele de seu protetor, quando o caçador lhe disse: “Amiga, se livrei as ovelhas desse voraz perseguidor, quero livrar as galinhas de terrível inimigo; em vez de uma, serão duas ações meritórias, e terei duas peles que vender; morre!” A raposa não previra este resultado.

MORALIDADE: Velhos avarentos, cuidado com os que vos afagam! consolai-vos, porém, certos de que o mal ganho nunca aproveita.


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FÁBULA LXXXVIII.
O caçador e o urso.



Em apertos de dinheiro, um caçador vendeu a pele de um urso que devia matar por aqueles dias, pois tinha descoberto o seu covil, e tudo preparado para tão importante caçada. Comido o dinheiro, o caçador se descuidava da promessa, e só por fim, cedendo a muitas instâncias do comprador, foi à caça. Levava uma espingarda de dois canos, uma boa faca, enfim todo o petrecho; não levava porém o mais indispensável, ânimo. Aparece o urso; o homem põe-se a tremer como varas verdes; o urso aproxima-se com majestoso vagar. O nosso homem tinha ouvido que essa fera não toca em corpos mortos; deixa-se pois cair, inteiriça-se todo, faz-se morto; e na verdade; com o medo está mais morto do que vivo. O urso encosta-lhe o focinho, cheira-o, revolve-o, e supondo-o inanimado, retira-se. O comprador, que viera para assistir à caçada, e que tudo vira de lugar seguro, chegou-se para o morto, e escarnecendo lhe pergunta. “Então, meu tratante, o que te disse o urso, quando te falou ao ouvido?” O outro cobrando alento, respondeu: “Disse-me e eu lhe acho razão, que não se deve comprar a pele do urso antes de o ver morto.”

MORALIDADE: Mostra essa fábula que nunca devemos prometer o que ainda não está em nossas mãos, e que pois não podemos dar.


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FÁBULA LXXXIX.
O leão e o mosquito.



E esta! porque fazes muita bulha com os teus rugidos, pensas que és grande coisa! porque tens um imenso corpazil, e uma carranca horrenda, acreditas que és rei dos animais! Aqui estou eu, eu, sim, que de ti não tenho medo. — Quem assim falava? Era um mosquito. A quem falava? A um leão. Sim, um mosquitinho a um leão! e nisso não ficou: Ora defende-te lá, proseguiu; meçamos forças. E pronto agarra-se às ventas do leão. O possante quadrupede ruge que abala os montes, procura com a pata arrancar do nariz o miseravel inseto; este porém introduz-se pela venta, e mais de dentro o morde. O leão indigna-se, precipita seus movimentos bate com a cauda os flancos, salta, com as garras dilacera o focinho; o mosquito tranqüilo e sereno, vai multiplicando ferretoadas. O leão emprega, para ver-se livre de tão tênue inimigo, força suficiente para domar tigres, e por fim, tendo-se em sua fúria mordido a si próprio, dilacerado todo com as garras, cai morto. Sai-lhe então da venta o mosquito, e zunindo celebra a sua vitória.

MORALIDADE: Não há inimigo fraco; para dar cabo de um leão basta um mosquito, quando com a perspicácia do ódio sabe dirigir seus golpes.


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FÁBULA XC.
Esopo e o mal criado.



Esopo ia passando por uma rua. Um rapaz mal criado quis entender com ele, e lhe jogou uma pedrada. Sem responder-lhe, Esopo mete a mão no bolso, e tirando uma moeda, lhe diz: “Camaradinha! admiro a vossa destreza e a vossa graça Tão belo talento deve ser animado e sinto que a fortuna não me favorecesse com seus dons, pois muito por vós faria. Entretanto tomai esta moeda, e desculpai-me. Felizmente ali vem um sujeito que é rico; mostrai-lhe a vossa graça, e há de vos ele dignamente retribuir”. O imprudente rapazola fiando-se no conselho, apanhou uma pedra, e atirou-a às pernas do homem poderoso e rico que se vinha aproximando. Este porém vendo-se insultado, mandou pôr seus pagens dar uma boa sova de pau no insolente.

MORALIDADE: Quando sofreres uma insolência, não te aflijas por não poderes castigá-la; dia virá em que o insolente a outro se dirija, e então tudo pagará.


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FÁBULA XCI.
O solitário e o seu urso.



Um homem que no lidar da vida muito tinha que se queixar dos outros homens, reconhecendo os falsos, egoístas, mal agradecidos, tornou-se misantropo, e renunciando à sociedade, fora embrenhar-se em um ermo. Aí vivia solitário, tendo por companheiro um urso que domesticara. No urso havia concentrado todas as suas afeições e cumpre confessar que lhe eram retribuídas. Quem os visse brincar juntos diria que era uma parelha de ursos. Um dia de verão, o solitário vencido pelo calor e pelo aborrecimento, adormeceu; o urso pôs-se a vigiar que nada viesse incomodar o seu amigo, que nada o acordasse. Uma mosca foi pousar nos beiços do homem, o urso procurou enxotá-la; como porém nada conseguisse por bons modos, pois a mosca ia-se e logo voltava, agarrou o bruto em uma pedra e atirou-lha quando estava pousada na cabeça do seu amigo. Matou-a, mas também o pobre misantropo foi-se desta para melhor, sem que lhe valesse o pranto do urso, arrependido da sua imprudência.

MORALIDADE: Nada mais perigoso que um amigo imprudente; antes mil vezes um discreto inimigo.


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FÁBULA XCII.
O feixe de varas.



Já velho, e portanto próximo a despedir-se do mundo, um homem que tinha muitos filhos, reuniu-os em redor de si, e mandando vir um feixe de varas, assim disse: Qual de vocês meus filhos, será capaz de quebrar esse feixe de varas? Experimenta, João. João procurou fazê-lo; não pôde. Vê tu, Pedro. Pedro também o não pôde; nenhum dos outros o conseguiu. Ora, eu, já velho e alquebrado, vou fazer o que vocês, moços e valentes, não fizeram, disse o pai, e desatando o feixe, tomou uma por uma todas as varas, e as foi quebrando. Então, prosseguiu: Aproveitai, meus filhos, esta lição. Enquanto estiverdes unidos, resistireis facilmente a todas as agressões e violências; os vossos inimigos, porém, hão de procurar desunir-vos; para isso aproveitar-se-ão das vossas paixões, e se o conseguirem, um por um ficareis todos perdidos.

MORALIDADE: Da união nasce a força; todos o sabem; não há verdade mais trivial: entretanto todos parecem ignorá-la.


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FÁBULA XCIII.
A lebre e a tartaruga.



“Condoo-me de ti”, dizia uma vez a lebre à tartaruga: “obrigada a andar com a tua casa às costas, não podes passear, correr, brincar, e livrar-te de teus inimigos.” — Guarda para ti a tua compaixão, disse a tartaruga: pesada como sou, e tu ligeira como te gabas de ser, apostemos que eu chego primeiro do que tu a qualquer meta que nos proponhamos a alcançar. — Vá feito, disse a lebre: só pela graça aceito a aposta. Ajustada a meta, pôs-se a tartaruga a caminho; a lebre que a via, pesada, ir remando em seco, ria-se como uma perdida; e pôs-se a saltar, a divertir-se; e a tartaruga ia-se adiantando. Olá! camarada, disse-lhe a lebre, não te canses assim! que galope é esse? Olha que eu vou dormir um poucachinho. E se bem o disse, melhor o fez; para escarnecer da tartaruga, deitou-se, e fingiu dormir, dizendo: Sempre hei de chegar a tempo. De súbito olha; já era tarde; a tartaruga estava na meta, e vencedora lhe retribuía os seus chascos: Que vergonha! uma tartaruga venceu em ligeireza a uma lebre!

MORALIDADE: Nada vale correr; cumpre partir em tempo, e não se divertir pelo caminho.


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FÁBULA XCIV.
A gata mudada em mulher.



Um misantropo, no demais modelo de todas as virtudes, tinha pela sua gata um amor exclusivo; achava-a bonita, engraçada, mansinha, e por fim, o que no sexo dela é raríssimo, tão discreta quão fiel e agradecida. Ah! se uma mulher houvesse como esta gatinha, dizia, ou se dado me fosse transformar em mulher este mimo dos animais, então acharia uma companheira com quem atravessasse o mar tempestuoso da vida! Condoeu-se dele uma fada, e cedendo a seus votos, transformou a gata em moça. Confuso pelo milagre, o nosso homem deu-se por feliz em poder naquele dia mesmo ir aos pés dos altares dar a mão de esposo a essa bela mulher.

Gata-moça e misantropo estavam nas nuvens, e este repetia àquela mil lições e mil conselhos, que ela, multiplicando-lhe afagos e carinhos, ouvia atentíssima. Súbito, faz-lhe ela sinal que se cale, inclina a cabeça; é toda atenção; dá ligeira um pulo, e agarra em um ratinho que travesso saíra do seu buraco. O instinto havia falado: a mulher era gata.

MORALIDADE: Por mais que procuremos vencer a nossa índole, sempre ela aí volta inesperada; fechai-lhe a porta, entra pela janela.


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FÁBULA XCV.
A mercadora de leite e seus cálculos.



Alegre vinha para a cidade uma camponesa trazendo à cabeça bojuda bilha de leite. “Hei de vendê-lo todo”, dizia, “e com o favor de Deus, sempre hei de achar no lucro o preço de uma linda frangalhona. Há de ser tão bonita, quão boa poedeira, pois hei de escolhê-la por certo sinal que nunca falha. De cada postura dar-me-há dezoito ovos, e, emprestando-me a vizinha alguma galinha choca, de mês em mês terei uma ninhada de dezoito pintinhos. Como são bonitos, como medram! Os machos vou-os vendendo, e ajuntando o dinheiro, as fêmeas crescem; saem à mãe dão-me ovos que é um regalo; crio-as até ter um cento delas. Cem? não: dez dúzias, é muito suficiente; não tenhamos mais, que lhes não dê a peste. Ora, com o dinheiro dos frangãos e dos ovos, estou rica! Qualquer tola iria comprar alguma fita para enfeitar-se aos domingos. É bom andar uma moça faceira e bonita; mas eu antes quero fazer render meu dinheiro. Compro pois uma porca; e porque não uma vaquinha? E então ovos, frangãos, leite, bezerros, em menos de nada, com juízo e economia, dão-me com que compre um lindo sítio. Eis-me senhora, enfim graças a Deus! escolho criadas jeitosas, servem-me elas para levar à cidade o meu leite, os meus ovos, e frutas, e hortaliça; e então, se aparecer algum rapaz bem feito, bonito, de bom gênio, e amigo de trabalhar, dou-lhe minha mão e a minha riqueza. Que fortuna e que prazer.”

Embebida nessa prosperidade, a camponesa esquece-se do que trazia a cabeça, e põe-se a dançar, a bilha vem ao chão, quebra-se; adeus leite, adeus galinha, pintos, adeus fortuna!

MORALIDADE: A esperança toda a vida nos embala; basta-lhe qualquer circunstância, por insignificante que seja, para que nela assente seus castelos, castelos que a imaginação doura, e que o menor sopro da realidade desfaz.


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FÁBULA XCVI.
A peste dos animais.



Um mal horrível, que a ira celeste inventou para punir os crimes da terra, a peste, fazia mil estragos entre animais. Nem todos morriam, mas todos, languidos, entorpecidos, quer de pavor, quer já por efeito da moléstia, arrastavam-se moribundos. Em tanta calamidade só valem grandes remédios. O leão convocou assembléia geral dos seus súditos, e assim falou: “Prestantes e amados vassalos, vós que o flagelo de Deus açoita, ouvi-me, e dai-me o auxílio de vossas luzes; nunca tão necessário nos foi, a nós todos, um bom conselho. Não é natural essa epidemia que nos vai devastando; cada dia morremos aos milhares; é por certo o castigo que algum crime de nossa raça está merecendo; cumpre pois aplacar a ira celeste. Lembrei-me a princípio de decretar um jejum de alguns dias; porém jejuando andamos todos pelo abatimento que a moléstia causa. Então ocorreu-me a idéia de fazermos aqui todos uma confissão geral, para descobrir-me qual o miserável cujo pecado nos trouxe semelhante desastre.” O parecer do rei foi por todos aprovado. O leão prosseguiu: “Não quero, nem para mim, injusto favor; se for o criminoso, com muita satisfação morrerei pelo meu povo; confesso pois que às vezes, em horas de fome, não respeitei bastante a vida do veado, da vitela, da ovelha, e nem mesmo a do pastor. Se julgais que são esses os crimes que o céu está punindo, dizei-o francamente, gostoso me imolarei ao bem de todos.” O javali, o tigre e outros muitos que tais, em coro aplaudiram: “Vossa Majestade está zombando! crimes, isso que praticou! nem são pecadinhos veniais. Comeu às vezes veados, ovelhas, pastores! Ora nisso muita honra lhes fazia!”

Continuou à confissão geral, nas ações dos mais ferozes brutos nada achou a assembléia que dizer; não houve crueza que todos à porfia não justificassem. Chega a vez do burro: “Senhores, disse ele, por mais que procure despertar minha consciência, a ver se me lembra algum crime que praticasse, nenhum me ocorre; somente um dia estando com muita fome, passei por um prado, propriedade de um convento. A erva estava tenra, orvalhada, apetitosa; ninguém me via; tudo me incitava; passando pois, não pude resistir à tentação, e apanhei na boca uma pouca de erva que mais, a jeito achei...” — Malvado! bradaram juntos todos os tigres e javalis da assembléia; roubar a erva de um campo pertencente a convento! Sacrilégio! E por causa desse miserável todos estamos pagando! Súbito o pobre burro é imolado à divina justiça.

MORALIDADE: Para o poderoso, qualquer que seja seu crime, nunca falta indulgência; o pobre ou fraco, nem que viva como santo, pode livrar-se; lá tem seu descuido, e esse não tem desculpa.


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FÁBULA XCVII.
O lavrador, seu filho e o burro.



Querendo vender seu burrico, um lavrador levava-o à feira, e para ter com quem pelo caminho palestrasse, fez-se acompanhar por seu filho, mocetão de uns quinze anos. Querendo que o burro chegasse descansado, para agradar aos compradores, os dois campônios iam a pé puxando-o pelo cabresto. Onde se viu isto! disseram alguns almocreves vendo-os passar. O burro todo lépido, tendo tão belo costado; e dois marmanjos a pé, palmilhando a estrada: será penitência que fazem, ou promessa que cumprem? O lavrador não deixou de achar-lhes razão e disse: “Filho, está me parecendo que esses tratantes não lembram mal; é parvoíce ir eu, já velhusco e cansado, andando a pé, enquanto o burro vai folgado como um fidalgo. Eu monto pois, e tu vai tocando.”

Dito e feito, o lavrador se escarrapacha em cima do burrico. Sucedeu passarem duas moças: “Que desaforo! disseram: um homenzarrão, forte e valente, bem repimpado, e o pobre do menino a pé arfando para acompanhar o burro!” O lavrador refletiu no caso, e reconhecendo que era injustiça deixar o filho a pé, disse-lhe: “Monta aqui na garupa, rapaz; hás de estar cansado.” O moço não esperou que segunda vez lho dissesse, e encarapitou-se atrás do pai.

Passaram então alguns lavradores: “Oh! lá!” disseram, “parece que essa gente quer levar à feira, não um burro, porém a sua pele; como vão repimpados, e o pobre animal nem já fôlego tem.” O lavrador pensou um pouco, e disse: “Filho, eu vou apear-me, fica tu montado, e andemos de pressa”. Assim se fez.

Caminharam algum tempo, e julgava o lavrador que tudo iria bem quando encontraram um mercador, e este, achando feio que o moço fosse montado e o velho a pé, perguntou: “Então, meu principezinho, onde viu Vossa Alteza que, para fazer jornada, é conveniente trazer lacaios da idade desse que o acompanha?” — Lacaio, eu! disse o pai, não, não podemos dar ocasião a tais afrontas; filho, apeia-te, carreguemos o burro às costas; é o que nos falta experimentar, para ver se tapamos a boca do mundo. Assim fizeram; o burro andou pela primeira vez montado, e não diz a história que com isso muito se afligisse. Mal porém viram a súcia alguns rapazes desataram às gargalhadas. “Qual dos três é mais burro?” perguntaram. “Sou eu, senhores”, respondeu o lavrador, “eu que por todo o caminho levei a ouvir os remoques de cada um, e a obedecer-lhes; eu que juro daqui por diante proceder como entender, sem dar ouvidos aos ralhos dos outros, e às suas observações.”

MORALIDADE: Em tudo e por tudo consulta a tua consciência e obedece-lhe; se quiseres tapar a boca do mundo nunca o hás de conseguir.


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FÁBULA XCVIII.
A assembléia dos ratos.



Um gato que o cão suscitara para a ruína dos ratos, o Napoleão, o César dos gatos, devastava o mundo; por mais ligeiros e espertos que se mostrassem os ratos, o valente e ardiloso César tantos via quantos deixava pelo chão estendidos. Matava por gosto, por ódio de raça, e não pela necessidade da fome. Nas vésperas de sua total ruína, os ratos reuniram-se em assembléia geral, para assentarem no que deveriam fazer em tamanha calamidade. Vendo-os reunidos, e compenetrados da sua importante missão, um deles, que presumia de orador e de estadista, pediu a palavra, e depois do mais patético discurso, concluiu: “Proponho que se ate um guizo ao pescoço do gato; assim qualquer movimento seu nos será denunciado por este estridor amigo, e tão infelizes não seremos, que não achemos algum buraco em que logo nos asilemos“. “Apoiado, apoiado!” bradaram com entusiasmo os ratos; um deles, porém mais velho e pensador: “Apoiado sim”, disse, “a lembrança é sagacíssima; mas quem há de atar o guizo ao pescoço do gato?”

MORALIDADE: Há muitos que nas circunstâncias de apuro têm a grande sagacidade de lembrar remédios ótimos, a que apenas um defeitinho se pode opor: serem absolutamente inexequíveis.


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FÁBULA XCIX.
Os ladrões e o burro.



Dois ladrões tinham roubado um burro, e disputavam acerca do que dele fariam; um queria vendê-lo, outro conservá-lo para seus passeios. De palavras passam a obras; choveu murro velho. Entretanto o roubado folgava, e pastava livre. Chega à sorrelfa outro ladrão, e vendo tão entretidos os companheiros, agarra no burro e safa-se.

MORALIDADE: Enquanto alguns perdem o tempo em porfias, aparece um mais avisado que aproveita a ocorrência, e os deixa olhando ao sinal.


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FÁBULA C
A coruja e seus filhos.



Fizeram a paz a coruja e a águia, e reciprocamente juraram não ofender aos filhos de cada uma das altas partes contratantes: “Conheces os meus filhos?” perguntou a coruja à águia. — Não, mas se mos queres mostrar e dizer como são, saberei reconhecê-los, e poupá-los. “Pois sim, atende; meus filhos são lindos, engraçados. Oh! como são engraçadinhos e bem feitos! são uns primores”. A águia tomou nota; daí a dias, estando a caçar deu com um ninho. Nele estavam dois horríveis filhotes, tristonhos, mal feitos, de cor, de piar que metia medo. “Não são estes por certo os filhos da minha amiga”, disse a águia e os foi papando. Nisso acode a coruja: “Assim respeitas a fé jurada? mataste os meus filhos!” — Teus filhos! disse a águia admirada; esses monstrozinhos nada tinham de lindos, nem de bem feitos e menos de engraçadinhos.

MORALIDADE: A ternura materna não vê as imperfeições dos filhos, e substitui-lhes belezas e graças que lhes negara a natureza.


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FÁBULA CI.
Os dois burros.



Iam dois burros, um carregado de sal, outro de esponjas. Chegaram à beira de um rio, nenhum quis desviar-se para ir à ponte, que próxima ficava, e que lhe daria passagem enxuta; o do sal meteu-se pela, água dentro, o das esponjas ficou parado a ver o que ao seu companheiro sucedia. A água do rio infiltrou-se na carga, e a foi dissolvendo, de modo que, quando saiu do banho e surgiu na outra banda do rio, o burro apenas conservava metade ou o terço do peso que lhe fora posto, e o maganão alegre se felicitava pela sua lembrança. Vendo-o tão satisfeito, o outro salta na água, pensando que outro tanto lhe sucederia. Coitado! as esponjas tomaram água; o peso tanto argumentou que, não podendo mais, o burro caiu morto.

MORALIDADE: Antes de vos resolverdes a fazer como os outros, e de pensardes que bem vos sucederá o que bem lhes sucedeu, vede se entre vós e quem quereis imitar, há perfeita igualdade e semelhança.


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FÁBULA CII.
O rato ermitão.



Cansado do viver do mundo, um rato filósofo, um santarrão, achou um dia um queijo flamengo, o abrindo-lhe um buraco nele sepultou-se vivo. Aí, longe do bulício dos negócios, em eterna penitência tinha à mão todos os cômodos, bom abrigo e boa papança. Entretanto, achando-se em apuros, o povo dos ratos resolveu fazer uma coleta geral de contribuições extraordinárias e de dons patrióticos. Foram os coletores à morada do nosso ermitão, contaram todos os desastres dos seus amigos, e expuseram-lhe o motivo da sua visita, O outro lhes respondeu: Nestas lágrimas que me correm pelas faces podeis ver quanto me penaliza o que me referis. Mas um favor que poderá fazer um velho solitário! Rezar, e só rezar, para que o céu vos assista. Contai, pois, com o auxílio de todas as minhas orações. Tendo assim falado, o nosso santarrão meteu-se no seu queijo.

MORALIDADE: Há egoístas assim; a sua delicada sensibilidade põe-lhes sempre lágrimas nos olhos quando ouvem a narração dos sofrimentos do próximo; porém dar algum auxílio ao desgraçado é o que não sabem nem desejam saber.


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FÁBULA CIII.
A águia, a gata e a porca.



Em uma árvore, como que apalavradas, foram arranchar-se três mães. Uma águia fez seu ninho nos mais altos ramos; uma gata arranjou sua cama no meio, onde o tronco se divide em grossos galhos; na parte inferior, ao pé das raízes, colocou-se uma porca. Todas tinham filhos, e viviam tranqüilas. Disso não gostou a gata. Um dia trepa ao ninho da águia, e diz-lhe: “Venho-lhe dar uma triste notícia, vizinha; os nossos filhos correm grande risco; a porca tem resolvido fossar a terra em redor das raízes desta árvore até fazê-la cair, para que, mortos com o há que, os nossos filhos sejam pelos dela devorados.“ — Que me diz, vizinha! agradecida lhe fico, hei de acautelar-me.

Então desce a gata, vai ter com a porca: “Minha amiga!” exclama, “terrível vizinhança temos! Sei de boa parte que a águia só aguarda uma ocasião para agarrar nos seus e meus filhos, que servirão de pasto à sua ninhada; acautele-se.”

Feito este belo trabalho, a gata mete-se na sua toca à espreita dos resultados. A porca já não se anima a sair; a águia julga que ela o não faz por estar ocupadíssima em suas escavações, e não querendo mais esperar, voa do seu ninho, vai acometê-la. Trava-se combate; as duas mães pelejam como mães que defendem seus filhos; ambas caem mortas, abandonando à ardilosa gata pasto de sobejo para si e para seus gatinhos.

MORALIDADE: O que não pode um intrigante!


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FÁBULA CIV.
A batalha dos ratos.



Cansados destes combates singulares que todos os dias tinham de travar com os gatos, e em que quase sempre sucumbiam, os ratos assentaram em regimentar-se, formar exército e escolher de entre si valentes coronéis, hábeis generais, que os guiassem, e para bem de todos dispusessem das forças e do préstimo de todos. Tudo isto não se fez sem alguma agitação, sem falatórios; logo pois chegou notícia ao povo dos gatos. Recrutar exército contra semelhante inimigo teria sido um opróbrio; de tal não se lembrou gato algum; contentaram-se com escolher dez campeões. Vendo confiadas à sua valentia a honra e a defesa da sua raça, foram estes ao encontro dos ratos. Acharam-nos postados em vasto campo, segundo a arte. Os gatos riem-se; os ratos tomam as risadas por ameaçadores miados e espavoridos dispersam-se, fogem; cada qual acolhe-se ao seu buraco. Os coronéis, porém, e os generais, que para melhor serem vistos no meio das proezas que pretendiam fazer, tinham posto elegantes penachos, não puderam a tempo livrar-se dessas insígnias, nem com elas encafurnar-se nos seus esconderijos. Pagaram pois as despesas da guerra; os dez gatos não deixaram escapar um só deles.

MORALIDADE: Na hora de perigo, antes confundir-se com o povo do que primar entre os chefes; ali abrigam-se todos na comum obscuridade, aqui pelo seu esplendor é cada um denunciado.


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FÁBULA CV.
O burro coberto com a pele do leão.



Um burro que se lastimava do seu mau fado, da ruim conta em que o tinham, do nenhum caso que dele faziam, achou uma pele de leão, e com ela se cobriu. Agora, sim, hão de ter medo de mim! disse consigo. O coitado enganou-se. Querendo rugir zurrou; e o primeiro que o ouviu, reparando melhor, descobriu-lhe a ponta da orelha que a pele do leão não tinha podido ocultar, e logo agarram-no, e a pauladas o castigam.

MORALIDADE: Quantos se cobrem com a pele do leão, e se esquecem da pontinha da orelha!


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FÁBULA CVI.
O galo, o gato, e o ratinho.



Um ratinho que pela primeira vez saíra a passeio, voltou para o buraco, todo afadigado, suando; a mãe que o viu, perguntou sobressaltada: “O que tens, filhinho?” — Ah! mamãe; se vosmecê tivesse visto...

“Então o que foi?” — Ouça, ia eu passear; tudo estava tão bonito, que não sabia ao que atendesse; mamãe, lá fora é mais divertido do que aqui na nossa casa. No meio de tudo, em pouca distância, avisto um bicho grande, malhado, de longa felpa, de olhos brilhantes e doces, de ar meigo e fagueiro; é da nossa raça por certo, mamãe, talvez seja nosso parente. Ia chegar-me para travar conversa, quando um maldito berrador me assustou, a mim que não sou lá dos mais medrosos. Que bicho horrendo, mamãe, era esse! turbulento, inquieto, tem sobre a cabeça um pedaço de carne, seus braços são curtos e cheios de penas, e para andar por certo lhe não servem. Mal me avistou, deu ele um grito que me fez estalar a cabeça, e me obrigou a fugir praguejando-o, principalmente porque não me deixou ir falar com o meu camarada, que não sei mais aonde poderei encontrar. — Pobre filho! disse-lhe a mãe, nunca procures encontrar-te com esse malvado; é um hipócrita, inimigo jurado de nossa raça; a quantos dos nossos pilha, mata e come; é um gato. Se dele escapaste, deves a Deus, e ao outro bicho. Esse, sim, pode-te ser útil, desse gostamos nós muito, e quando o pilhamos a jeito, dá-nos sofrível papata; é um galo.

MORALIDADE: Nunca te fies na aparência; assim acabou a ratazana as explicações que deu ao filho, e com ela repitamos: — Nunca te fies nas aparências.


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FÁBULA CVII.
As vespas e as abelhas.



Demandavam as vespas e as abelhas acerca da propriedade de um favo de mel; foi juiz da causa a formiga. Inquiridas as testemunhas, depuseram todas que tinham visto em torno desse favo uns insetos escuros, compridos, com asas, tais quais as vespas, diziam umas, tais quais as abelhas, diziam outras. Estava o juiz perplexo; o pleito já durava mais de seis meses, e prometia durar anos; escrivães, procuradores, advogados, já, de parte a parte, tinham devorado mais do que valia o favo, quando uma abelha prudente: “Para que estamos com estas coisas”, disse, “se o favo é das nossas contrárias, façam elas outro, que nós outro igualmente faremos, e ver-se-à quem delas ou de nós foi capaz de fabricar esse que pretendem lhes pertence”. As vespas não quiseram anuir, e assim, o juiz pôde sem escrúpulo condená-las.

MORALIDADE: Pela obra se conhece o artífice.


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FÁBULA CVIII.
Os touros e a rã.



Pelejaram dois touros: uma rã que os via do charco em que estava escondida, se lamentava, praguejava o seu mau fado, fazia votos para que dos dois possantes rivais nenhum fosse vencedor, e ambos sucumbissem. “O que tens com essa batalha?” perguntaram-lhe as outras, “o que te importa que o touro malhado vença, ou que vença o touro preto?” — O que me importa? Pois não sabeis que o vencido há de ser excluído do prado, e que, desterrado, terá de vir esconder sua vergonha no nosso charco? E quantas de nós não serão esmagadas pelas suas furibundas patas?

MORALIDADE: A rã prudente sabia que os pequenos são sempre vítimas das pendências dos grandes.


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FÁBULA CIX.
O burro e a sua prosápia.



Um burro fidalgo não falava senão de sua mãe; que magnifica égua que havia sido! Só a príncipes pertencera! Um doutor, que para ver os seus doentes nele se repimpava, era então dono do burro, e o tratava a regalada! por fim o doutor, empoleirando-se, passou a ter sege, e vendeu burro a um carroceiro. Então não falou ele mais de sua mãe fidalga, e para consolar-se unicamente se lembrava do jumento que fora seu pai.

MORALIDADE: Aos presumidos que só falam da sua prosápia, a desgraça traz recordações que estavam longe de sua memória mas que a todos estavam sempre presentes.


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FÁBULA CX.
Os perus e a raposa.



Um bando de perus avistou uma raposa; treparam todos a uma árvore para se porem a salvo.

O astucioso animal disse logo consigo: “Hei de cear peru; daqui não saio sem pilhar algum.” E pôs-se a fazer em torno da árvore, com fascinadora rapidez, mil evoluções; já saltava, já fingia querer trepar, já deitava-se, já levantava o rabo como um penacho, já fazia as mais medonhas caretas, já virava as mais divertidas cambalhotas. Assustados, inquietos, os perus nem um só momento desviavam os olhos; iam pois ficando atordoados, iam caindo, e a raposa os ia caçando.

MORALIDADE: Muitas vezes, por demasiadamente atendermos aos perigos, caímos neles.


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FÁBULA CXI.
A avidez castigada



Nos tempos antigos, quando ainda se usava de arco e flecha, um caçador a quem a fortuna favorecera matou uma corsa, e logo após um gamo. Ambos estavam estendidos no chão, e ainda não satisfeito, o caçador não tratava de retirar-se; passa um javali; como privar-se de tão bela presa! Dispara-lhe o caçador o arco; cai a fera estrebuchando, mas não morta. O caçador prepara nova flecha com que a acabe; vê ao longe uma perdiz; nada farta a vasta fome de um fazedor de conquistas! À perdiz pois vai dirigir-se, e descuida-se do semimorto javali; este ergue-se vingativo, e em último esforço investe para o inimigo, e com ele sucumbe. A perdiz lho agradece.

Chega entretanto um lobo já com a pele em cima dos ossos, e dentes de polegada e meia; vendo quatro corpos (e que corpos!) o mísero exulta: Ó fortuna, quanto te agradeço! exclama; todavia não sejamos desperdiçados; nem todos os dias são como este. Tenho aqui provisões para quatro semanas. Um corpo por semana; que fartura! Comecemos amanhã; por hoje, vamos comendo a corda deste arco; é feita de tripa, e ainda está fresca; como cheira!

Assim falando atira-se ao arco, e tão asselvajadamente, que a flecha, preparada para a perdiz, desprende-se, e o mata.

MORALIDADE: O cobiçoso sempre ensurdece à voz da prudência. Basta; goza do que tens, diz-lhe esta. — Sim, hei de fazê-lo amanhã. Esse amanhã não chega, enquanto mal sucedida empresa não lhe traz a ruína.


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FÁBULA CXII.
A torrente e o rio.



Com grande fracasso precipitava-se de altas serras uma torrente; tudo era horror em torno dela, ninguém se atrevia a transpô-la, afrontando as suas iras. Apertado por uns ladrões, um viajante não teve outro remédio, cumpria-lhe ou entregar-se aos ladrões, ou romper pela torrente; atirou-se pois. A água era pouco profunda, e sem embargo das suas roncas, não ocultava o menor perigo.

Prosseguindo em sua viagem, viu-se o nosso homem impedido por um rio que plácido e sereno se deslizava sem o menor sussurro. Isto não é obstáculo para mim, disse, para mim que afrontei a torrente! E saltou ao rio. Enganou-se porém; o rio era mui profundo; não deu vau e o mísero afogou-se.

MORALIDADE: Os palradores, vociferando bravatas, são mais inofensivos do que os concentrados e silenciosos.


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FÁBULA CXIII.
O cão fiel.



Um trabalhador do campo não querendo distrair a família, havia adestrado um cão a fazer-lhe o serviço. Quando ia trabalhar longe de casa, em vez de ser a mulher ou algum dos filhos quem lhe levasse a sopa do jantar, punham-na em uma vasilha, e atavam-na ao pescoço do cão; este a levava fielmente ao senhor, e filhos e mulher continuavam no trabalho da casa, e não perdiam tempo.

Um dia o fidelíssimo criado é acometido por um dogue; procura contra ele defender o jantar do senhor; mas outros dogues acodem ao ataque. Vendo então que era inútil a defesa, o fidelíssimo diz: Esperem lá, camaradas, deixem-me tirar o meu quinhão, e abandono-lhes o resto. E logo mete o focinho na sopa, tira dela o melhor toucinho, e enquanto come, os outros devoram o resto.

MORALIDADE: Há muitos que são fieis até a hora em que se vêem provocados pela oportunidade e pelos maus exemplos.


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FÁBULA CXIV.
O rato e o elefante.



Uma grande reunião de povo admirava em uma feira o monstruoso tamanho de um elefante; um ratinho indignando-se exclamou: “Fortes basbaques! o que tem que ver essa montanha informe de carne? Sem graça, sem beleza, mal pode mover-se; e o admiram! Nós, nós, ratinhos, corremos, pulamos, saltamos, somos cheios de graça, e em vez de nos prestarem a admiração devida, juram-nos guerra e extermínio. Será porque somos nacionais, e esse monstro é estrangeiro?” Enquanto assim repreendia os basbaques, desapercebido o ratinho é pilhado por um gato, que logo lhe mostra a diferença que vai de um elefante a um camundongo.

MORALIDADE: A vaidade e a inveja fazem muitas vítimas; até os ratos querem que se lhes dê a importância dos elefantes.


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FÁBULA CXV.
Os dois galos.



Pelo domínio o de um pátio, povoado de galinhas e frangalhonas, brigavam dois arrogantes galos. Um venceu; o vencido foi envergonhado esconder-se, e para mais dobradas mágoas ouvia de contínuo o estridente cantar do seu triunfante inimigo. Passa um gavião; o vencedor estava no mais alto do poleiro; o gavião lança-lhe as unhas. Aparece então o vencido, vem consolar as viúvas, suas consolações são aceitas, e o ex-vencedor está esquecido

MORALIDADE: São coisas da fortuna; desconfiemos sempre dela, especialmente depois das vitórias, no seio da prosperidade.


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FÁBULA CXVI.
A raposa sem rabo.



Uma das mais astutas raposas fez tantas que caiu numa cilada. Napoleão teve seu Waterloo; que muito é que a nossa raposa fosse uma vez mal sucedida? Mais feliz porém do que Napoleão, se este perdeu, perdeu ela somente o rabo, e conseguiu safar-se da armadilha. Viver porém sem rabo, quando suas irmãs o têm tão fornido! andar sempre exposta aos risos e motejos! A nossa raposa não se pode resignar a tamanha desgraça. Convocando pois assembléia geral, tomou a palavra, e mostrando todos os inconvenientes do inútil peso do rabo, propôs que todas as raposas proscrevessem tão desajeitado enfeite. “A lembrança é ótima, e o discurso eloqüente”, disse uma delas, “mas, camarada, para que possamos melhor deliberar, vire-se, por quem é.” A desrabada virou-se; e vendo-a, deram-lhe as outras uma vaia que a obrigou a fugir para sempre.

MORALIDADE: Em geral o amor próprio nos faz tomar por perfeições os nossos defeitos, e propô-los à imitação dos mais.


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FÁBULA CXVII.
A canoa boiando.



Em uma idade ameaçada, tinham disposto alguns vigias que dessem aviso do que ao longe avistassem. Os habitantes queriam evitar surpresas, e ter tempo de preparar heróica resistência. Os vigias descobrem ao longe uma coisa. O que será? É poderosa esquadra que se aproxima. “Alerta!” bradaram. A coisa chega mais perto. “Não é esquadra”, disseram, “há de ser alguma nau.” Por fim a onda atira à praia o objeto de tão sérios cuidados; era simplesmente uma velha canoa que vinha boiando.

MORALIDADE: Assim é tudo, perigo, desgraça. prosperidade, prazer; de longe é alguma coisa de perto é nada.


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FÁBULA CXVIII.
Os dois burros.



Iam de parceria dois burros, um lépido e sem carga; era o que servia para montaria do seu amo, o outro carregadíssimo a não poder mais. Debalde o mísero suplicava a seu irmão que o aliviasse de parte da cargas e dele se condoesse, o outro ria-se, e não atendia às súplicas. Por fim o carregado sucumbe, e logo o dono passa às costas do companheiro toda a carga, e não só ela, porém também a pele do defunto.

MORALIDADE: Ajudemo-nos uns aos outros; não é só caridade, é o próprio interesse que no-lo aconselha.


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FÁBULA CXIX.
O veado e a vinha.



Fugindo de uns caçadores, escondeu-se um veado em uma vinha. Estava salvo do perigo: porque os caçadores, depois de muito o haverem procurado, já se iam retirando. Vai o ingrato, põe-se a comer as folhas da vinha, que toda estremeceu; os caçadores voltaram-se e o descobrem

MORALIDADE: A ingratidão é tão torpe que as fábulas se multiplicam para mostrá-la castigada; ficará alguém corrigido?


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FÁBULA CXX.
O pobre e o rico.



Sentado na sua tripeça levava todo o dia um sapateiro a trabalhar e a cantar. Defronte dele morava um opulento banqueiro, que de contínuo se praguejava porque apetite e sono não são coisas que se possam comprar; o desgraçado rico não podia comer, nem dormir; em nada achava divertimento; insípido aborrecimento por toda parte o acompanhava. Que perseguição a em que vivo! exclamava entre bocejos; dinheiro tenho-o de sobra, gasto-o às mãos cheias, freqüento todas as reuniões e divertimentos, e os dias pesam-me! ainda mais me pesam as noites! Como conseguirei matar estas importunas horas que me matam! Quão feliz é o meu vizinho sapateiro! Desde que rompe o dia até que anoitece, ei-lo a rir-se e a cantar; à noite o maior sossego reina em sua casa, e diz que ele está dormindo, até às vezes ouço roncar! Quero saber de que receita usa.

Mandou pois chamar o sapateiro: “Viva, mestre; folgo de o ver sempre alegre, e bem disposto; ora diga-me, como faz para assim conservar-se; quanto ganha por ano?” — Por ano! meu senhor, näo zombe da gente; pois nós lá sabemos quanto ganhamos; vamos vivendo cada dia com o lucro da véspera, e com tanto que haja saúde, e não falte que fazer, não falta pão; o que mais podemos querer? “Se com tão pouco está feliz, quero vê-lo felicíssimo; aqui tem este saco do dinheiro; é seu!“

O sapateiro desfez-se em agradecimentos; levou para casa o dinheiro, contou, repartiu pelos anos que esperava viver; era de sobra. Procurou um esconderijo em que o guardasse, e de contínuo inquieto ia vê-lo; não o achava bem guardado; mudava-o de esconderijo; de tudo se temia; à noite, à noite especialmente, tudo lhe era ladrão. Nem mais sossegado dormir, nem mais alegre cantar! Ao cabo de um mês, já amarelo, magro, triste, teve uma boa lembrança, agarra no saco do dinheiro, e vai à casa do vizinho. Tome lá, meu senhor, o seu saco, exclama; quero ver se recobro o meu sono e as minhas cantigas.

MORALIDADE: O homem confunde a riqueza com a felicidade; é o mais triste dos seus erros.



FIM

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