sábado, 21 de agosto de 2010

Fábulas de La Fontaine

A morte e o desgraçado
A ave que uma seta ferira
A raposa e a cegonha
A cigarra e a formiga
O corvo e o queijo
A galinha dos ovos de ouro
O carvalho e o caniço
O lobo e o cordeiro
O homem de meia-idade e duas damas suas
O galo e a pérola
A rã que quer quadrar c'o boi na corpulência
A ave que uma seta ferira Cravada mortalmente,
Por alado farpão, seu fado mísero
Uma ave deplorava:
Sofrendo em dor acréscimo dizia:
"Contribuir nós mesmas
Em nosso próprio dano! - Homens iníquos
Tirais nossas asas
Com que as farpas mortais o vôo estirem!
Mas não zombeis de nós, ímpia progenie;
Que sorte a nossa igual, se vos departe!
Dos filhos de Japet sempre a metade
Deu armas contra a outra."




O Carvalho e o Caniço O Carvalho, ao Caniço, disse um dia:
(Carvalho) Bem tens que te queixar da natureza,
Que c'os pés d'um picanço, frágil vergas;
Um bafejo de vento, quanto baste
A encrespar a flor da água, te assoberba;
Enquanto, igual ao Cáucaso, eu co'a fronte,
Não farto de atalhar ao Sol os raios,
Dos negros vendavais arrosto as fúrias.
Nórtias, com que anceias, são meus zéfiros.
Se ao menos te abrigarás com essas folhas,
Que esses contornos cobrem,
Tanto não padecerás;
E eu contra os temporais te dera amparo
Mas vocês nascem n'essas ribas úmidas
Aos escarcéus do vento avassaladas...
Com vocês foi injusta a Natureza.
(Caniço) Vem de boa alma o dó, que de mim
mostras;
Mas cesse esse cuidado.
Menos que a ti me é temeroso o Vento;
Que eu curvo-me e não quebro. Tu tégora,
Sem vergares o tronco, há resistido
As mais rijas refregas.
Vejamos até o fim. - Palavras ditas,
Eis do horizonte arranca furioso
O mais terrível filho,
Que o Norte, em seus quadris téqui trouxera.
Verga o Caniço, tesa-se o Carvalho;
Reforça o repelão o vento, e alcança
Descarnar a raiz de quem ufano
Roçava os Céus co'a fronte,
Co's pés calcava o inferno.




A galinha dos ovos de ouro Tudo perde a Avareza
Quando quer ganhar tudo.
Para abono, só tomo essa Galinha
Fabulosa, que punha os ovos de ouro.
Crendo o dono que tinha
No ventre dela um tesouro,
Matou-a, abriu-a, e viu-a igual as outras,
Que ovos comuns lhe punham. - Defraudou-se
Do melhor bem que tinha
Que lição para Mirras*!
N'esta era o vimos. Pobres d'ontem a hoje,
Por sôfregos de ser, d'um pulo, ricos.

* Chamamos Mirras aos avarentos, porque deles
se não dira
mais chorume do que da mirra.




O homem de meia-idade as duas damas suas Com meia idade, e já meio-grisalho
Certo homem assentou, que já era tempo
De cuidar n'uma esposa. Ora ele tinha
Cum quibus;
E quem os tem escolhe ao tabuleiro. -
Todas em agradar-lhe se esmeravam;
Mas não tinha tanta ânsia o Namorado:
No acerto estava o ponto.
Quem mor quinhão porém tinha em seu seio
Duas viúvas eram:
Uma já bem-madura, outra inda verde.
A madura, com arte, remendava
Estragos da Natureza.
Ambas rindo com ele, ambas brincando,
Animando, anediando-lhe o cabelo,
Tirava a Velha quantos pretos via,
Para ajeitar o amante à sua idade;
A Moça, com mais gana se ia aos brancos.
Tal recado se deram na melena,
Que ficou nua. - O tal, que deu fé da obra:
(Hom.) Senhoras, que tão bem me
encalvecesteis,
Mais ganhei, que perdi. Dou-vos mil graças.
De esposar não tratemos;
Que entendi da calvice, que cada uma
De vós quer, que a seu gosto,
E não ao meu, eu viva.
Calvo ou não calvo, fico-lhe obrigado
Da lição que me deram.



O lobo e o cordeiro Melhor razão foi sempre do mais forte;
Já o ponho em pratos limpos.
Na clara veia d'um regato a sede
Um cordeiro matava.
Chega esfaimado um Lobo, andando a corso
(Lobo) Quem te deu auso (diz em raiva
aceso)
De vires enturvar a água que eu bebo?
(Cord.) Oh não se agaste Vossa Majestade,
Mas antes considere,
Que além de passos vinte, estou mais baixo,
Bebendo na corrente
E não posso turvar-lhe, em conseguinte,
Por modo algum a veia aonda bebe.
Lobo) Que a enturvas digo: e sei que o ano
passado
Disseste mal de mim.
(Cord) Como o podia
Eu, que nato não era; eu, que ainda mamo?
(Lobo) Pois disse-o teu irmão, se o não
disseste.
(Cord.) Não tenho irmão.
(Lobo) Pois disse-o um teu parente.
Que vós, e vossos cães, vossos pastores,
Nao me poupais em ditos
Ouvi-o a muitos; tenho de vingar-me.
- N'sto, ao cerrado mato o leva o Lobo;
sem mais processo o come.




A morte e o desgraçado De feixes de Montano assoberbado
Pobre Matteiro, que co'a carga verga
Vinha gemendo, a passos mal seguros,
Em busca da palhoça fumarenta.
Mais nao podendo já, débil, anciado,
Deita os feixes no chão, recorda penas.
(Mat) Soube eu, desde que hei nascido, o que
era gosto?
Há quem mais pobre que eu, no mundo seja?
Nunca hora de descanso, e o pão nem
sempre!
Mulher, filhos, tributos e soldados
Credor, lavor sem paga
São a pintura cabal d'um desgraçado.
A Morte chama, - e a Morte não remacha; -
Ei-la - a que lhe pergunta:
(Morte) Que desejas de mim?
(Mateiro) Que me ajudes, e muito diligente,
A por-me às costas estes feixes todos...



A rã que quer quadrar c'o boi na corpulência Vira uma rã um boi formoso e nédio, E ela, que em seu talhe (ao muito) um ovo
iguala,
Estende-se, invejosa, incha-se, esforça-se,
Quer é o boi confrontar-se.
Já diz: "Mana, olhai bem: hombeio c'o ele?
Ou falta quasi nada?"
(Mana) Nada. (Rã) Eis-me agora.
(Mana) Nem por sombras. - Fez tanto a tal
brutinha,
Que enfim arrebentou.
De almas tão parvoas anda o mundo cheio.
Um burguês quer palácio, como um duque;
Quer cada principote embaixadores;
cada marquês quer pagens.



A raposa e a cegonha O compadre raposo fez seu gasto,
E à comadre Cegonha deu convite;
Convite apoucadinho, e sem amanho:
Umas papas. - Não vivia o Raposo
A la grande.
E n'um prato as tais papas pôs na mesa.
C'o longo bico seu picava o prato
A cegonha, mas nada recolhia.
Gil Raposo, co'a língua varredoida,
O prato alimpa em duas lambedelas. -
Por se vingar do logro,
Deixa passar uns tempos,
E convida a Cegonha. Eis ele logo:
(Rap.) Com muito gosto. Eu cá, c'os meus
amigos
Cerimônias não uso.
- A hora-dada, à casa vai correndo
Da hospeda Cegonha.
Louva-lhe a cortesia; - bem guizada.
E a ponto acha a comida.
Nunca a Raposos falha a boa gana.
Já só c'o cheiro lhe regala a cerne
Cortadinha em miúdos comesinhos.
Não stá aí tudo. - Acod um embeleco,
Que é vir à mesa a carne
N'um vaso de gargalo mui comprido. -
E a Comadre ir picando
C'o bico até ao fundo;
Mas a tromba de Gil tendo outro talhe,
Foi-lhe força em jejum voltar a toca
Tão vergonhoso e murcho
C'o rabinho entre as pernas, cabisbaixo, Qual Raposo agarrado por galinhas.
Burlões, convosco falo:
Esperai outro tanto.



A Cigarra e a formiga A Cigarra, a cantar passara o estio;
Eis que assopra o Nordeste, e se acha balda;
Sem migalha de mosca, nm de verme.
Vai, gritando lazeira,
A Formiga, pedir, sua vizinha,
Que lhe empreste algum grão para ir
vivendo,
Té que a nova Estação, bem-vinda, aponte.
Diz-lhe: "A fé de Cigarra, antes de agosto.
Pagarei tudo, principal e juros."
Não ser fácil no empréstimo,
É na Formiga a mácula mais leve.
Com que diz a que vem pedir emprestado:
"Em que lidavas do calor na quadra?"
(Cig.) Ai! faça-me favor. eu, noite e dia,
Cantava a quantos iam, quantos vinham.
(Form) Cantavas? Muito folgo. Dança agora.




O Corvo e o queijo A Ambrosio Corvo, empoleirado na árvore,
Com um queijo no bico,
Gil Raposo, que mui lampeiro acode
Ao faro, quase, quase que assim fala:
"Bons dias, Senhor Corvo,
Como é guapo! Que lindo me parece!
Bofé, se a voz tem garbo igual às plumas,
Nao há Fênix tal nessas redondezas."
- Não cabe em si de gaudio, ao logro, o Corvo.
Abre de par em par o bico, e cai o queijo.
Logo o raposo o empolga.
"Aprenda (assim lhe diz) meu Senhorzinho,
Que todo Lisonjeiro
Vive à custa de quem lhe dá ouvidos.
Certo, que esta lição bem vale um queijo!"
Triste e torvado o Corvo,
Jurou (mas tarde!) não cair mais n'outra.



A galinha dos ovos de ouro Tudo perde a Avareza Quando quer ganhar tudo.
Para abono, só tomo essa Galinha
Fabulosa, que punha os ovos de ouro.
Crendo o dono que tinha
No ventre dela um tesouro,
Matou-a, abriu-a, e viu-a igual as outras,
Que ovos comuns lhe punham. - Defraudou-se
Do melhor bem que tinha
Que lição para Mirras*!
N'esta era o vimos. Pobres d'ontem a hoje,
Por sôfregos de ser, d'um pulo, ricos.
* Chamamos Mirras aos avarentos, porque deles
se não dira
mais chorume do que da mirra.


O galo e a pérola
Deparou c'uma pérola o Galo um dia;
Foi ter c'um lapidário:
(Galo) Eu fina a julgo
Mas dera maior valor a um grão de milho.
- Leva ao livreiro um manuscrito um néscio:
(Nesc.) Tenho-o por bom; mas creio que um
cruzado
Mais préstimo me tem, que o melhor livro.
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